Retrato, poesia de Adalgisa Nery

20 10 2025

Mulher sentada ao espelho

Alberto Micheli (Itália, 1863-1952)

óleo sobre tela, 85 x 57 cm 

 

 

 

 

Retrato

 

Adalgisa Nery

 

Lembro-me desse rosto.

Era risonho mas envolvido numa sombra triste,

Sua voz era clara mas sua língua era tímida, 

Voz de criança que suga o peito materno,

Língua de mulher após duros fracassos.

Sua fonte era larga e seus cabelos dourados, 

Fronte vigiada pelas grandes insônias.

Seus olhos eram vagos,

Vagos em beleza e em fixação.

Tinham nas pupilas o embaciado de que nasceram mortos.

Seu andar era firme e duro

Contrário a toda a fragilidade de seu corpo

Era como o andar do condenado

Subindo para a morte os degraus da guilhotina.

Sua boca era igual

Igual a tantas bocas de mulher,

Apenas depois de seus sorrisos tristes

Notava-se nos lábios um rito de amargor. 

Suas mãos eram

Mãos grandes, secas e vividas, 

Mãos que afagaram em silêncio

Muitos corpos amados horas esquecidas.

Suas mãos eram como bocas, como olhos, 

Como vozes, com vida independente

Antes do corpo ser adolescente.

Eram mãos velhas e tristes

Eram como olhos vividos em pranto.

Às vezes com um movimento de inocência

E logo depois tomavam atitude de degradação.

Eram mãos que usavam alma emprestada

De dedos longos e inquietos

Como inesperados movimentos de serpente

E mudavam-se às vezes num suave tremor de seios de virgem

Tonteada em amor.

Sobre a vida do corpo desse rosto não direi mais nada

Não sei se era boa ou má

Se era maldita ou abençoada

Porque talvez essas formas destacadas que meus olhos viram

Fossem  um sonho ou outra visão qualquer

Ou possivelmente seja meu

O retrato dessa mulher.

 

(1948)

 

Em: Mundos oscilantes: poesias completas, Adalgisa Nery, Rio de Janeiro, José Olympio: 1962





O escritor no museu: Adalgisa Nery

4 06 2024

Adalgisa Nery, 1934

Cândido Portinari (Brasil, 1903-1962)

Têmpera com areia, 60 x 72 cm





Escritora no museu: Adalgisa Nery

22 04 2023

Adalgisa Nery, 1930

Ismael Nery (Brasil, 1900-1934)

[Marido da escritora]

óleo sobre tela





Poema natural, Adalgisa Nery

6 02 2023

Mulher lendo

Mordecai Lavanon (Romênia-Israel, 1901-1968)

óleo sobre tela, 71 x 59 cm

 

 

 

Poema natural

 

Adalgisa Nery

 

Abro os olhos, não vi nada

Fecho os olhos, já vi tudo.

O meu mundo é muito grande

E tudo que penso acontece.

Aquela nuvem lá em cima?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

Ontem com aquele calor

Eu subi, me condensei

E, se o calor aumentar, choverá e cairei.

Abro os olhos, vejo um mar,

Fecho os olhos e já sei.

Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.

Quando a maré baixar, na areia secarei,

Mais tarde em pó tomarei.

Abro os olhos novamente

E vejo a grande montanha,

Fecho os olhos e comento:

Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,

Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

 

 

Poemas, Adalgisa Nery, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional:1960





“Histórias ao vento”, poesia infantil de Adalgisa Nery

2 03 2020

 

 

 

vento no outonoIlustração inglesa, 1950s.

 

 

Histórias ao vento

 

Adalgisa Nery

 

O vento veio correndo

Assoviando, gritando

Que vira a lua nascendo,

Que vira a estrela brilhando,

Que o beija-flor vira voando,

Que o rio vira cantando

E o fruto amarelando.

Que vira o orvalho caindo

Sobre a relva e sobre a flor,

Que vira a abelha zumbindo

Dentro das pétalas em cor,

Que vira a semente no chão,

Nas águas, o peixe mudo,

O pastor tangendo as ovelhas

Cantando por nada e por tudo.

O vento veio correndo,

Assoviando, cantando

Que vira o mais belo mundo:

Uma criança nascendo,

Uma criança brincando,

Uma criança sorrindo, vivendo,

Uma criança cantando.

 

Em: Poesia Brasileira para a Infância, Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito, São Paulo, Saraiva: 1967, Coleção Henriqueta, p. 185.