Resenha: “A contagem dos sonhos”, Chimamanda Ngozi Adichie

11 06 2025
ilustração por IA.

 

 

Este é o quarto livro de Chimamanda Ngozi Adichie que leio.  Como outros leitores que gostam de sua escrita esperei dez anos para essa nova produção.  Finalmente A contagem dos sonhos veio, trabalho pós pandemia, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Júlia Romeu.  É óbvio que não há falta de assunto para a autora, nunca houve, por tudo que já li dela, Chimamanda continua loquaz na sua escrita. 

A sensação que tive é que após alguns anos sem publicar, a autora tinha muito, muito mesmo, a dizer sobre mulheres e seus sonhos.  O livro é extenso.  Sinto que poderia ser dividido em dois excelentes romances com diferentes diretrizes.  Isso porque ele relata desejos, sonhos e o cotidiano de quatro mulheres que lutam para se realizar economicamente, profissionalmente, além de preencherem seus destinos de esposas, amantes, mães e filhas.  Não é um conjunto fácil de tarefas a concretizar.  Essa luta, a persistência na busca, a procura do preenchimento do sonho é a coluna dorsal da obra. Ela trata das expectativas frustradas, dos obstáculos do dia a dia, e mostra a quase impossível ideia de casar sonho com realidade.  

 

 

Não falta vontade, perseverança, educação ou dinheiro a três dessas mulheres: Chiamaka, Zicora e Omelogor, as três nigerianas.  O caso de Kadiatou já é diferente desde de seu nascimento.  Outra obra deveria ser escrita para ela. Originária da Guiné ela se faz adulta dentro  dos ditames  da educação muçulmana.  Traz consigo os limites de seu papel social que diferem daqueles das outras três personagens, quando emigra, acaba sofrendo consequências traumáticas pelas quais não é responsável. 

As quatro mulheres são apresentadas em sequência, e têm suas vidas levemente entrelaçadas. Chiamaka abre a narrativa. Ela é escritora-jornalista especializada em escrever colunas para revistas de viagem, vem de família rica, emigra para os EUA, não tem problemas financeiros e é apoiada pelos pais, mas não consegue encontrar um parceiro de vida adequado.  Zikora, a segunda que conhecemos, é amiga de Chiamaka e pode até ter sido apresentada ao leitor anteriormente, já que sua história apareceu como um conto independente, em 2020, Zikora, pela Amazon Original Stories.  Lá, é personagem principal.  Aqui, a mesma história: advogada de sucesso em Washington DC, que se vê igualmente lograda na escolha de um companheiro de vida. Quando engravida é deixada de lado pelo homem que ama. Foi durante o parto e nos dias subsequentes que conseguiu perceber as dificuldades que sua mãe teve, e consegue reconciliar seu desejo com o que sua mãe imagina para ela e o neto. Omelogor, é prima de Chiamaka, mas as duas não poderiam ser mais diferentes. Ela também se muda para os Estados Unidos para estudar. Tem muito sucesso no campo das finanças.  Mostra também seu lado de defensora das mulheres quando dá conselhos para homens, incentivando-os a agir de maneira mais ‘civilizada’ em seu blog.  Entra em controvérsias, mas é autêntica.  Das três nigerianas, ela é a personagem mais  tridimensional, suas faltas, pecados, erros de julgamento a fazem uma pessoa completa.  Talvez seja a mais interessante das nigerianas.

 

Chimamanda Ngozi Adichie

Finalmente, na sequência, temos a história de Kadiatou, comovente, triste, de grande poder dramático.  Sua relação com as outras mulheres retratadas é que ela foi empregada de Chiamaka, e vai para os EUA, asilada, procurando uma vida melhor para sua filha.  Essa história, completamente diferente das outras, até mesmo no tom, lembra um caso real que chegou às manchetes dos jornais por volta de 2011, quando de uma camareira de hotel foi abusada por um homem de negócios de alto nível, em Nova York. Para mim, essa história deveria ser um livro à parte.  Principalmente porque na seção final quando voltamos a saber de Chiamaka — cujo relato fecha o livro — percebemos ainda com maior precisão a diferença de tom usado nas três primeiras narrativas, e a dela.  E também os problemas que afetam Kadiatou serem de muito maior grandeza do que os enfrentados pelas outras.

O que as une é a constante procura do amor e da felicidade. Todas acabam frustradas pelos homens que escolhem, pelas escolhas que fazem ou pelas pressões sociais.  Com esse perfil fica óbvio que Chimamanda Ngozi Adichie continua dando voz às frustrações das mulheres que lutam contra o machismo, o racismo e desigualdades sociais. Tudo dentro do tradicional perfil de suas obras, que conquistaram, a cada publicação, milhares de leitores devotos. Mas neste livro acredito que ela poderia ter sido mais sucinta.  O livro é longo. E se arrasta em algumas passagens.  Para mim, sua melhor obra até hoje, mais redonda, mais completa, é Meio Sol Amarelo, narrativa de grande impacto.  Se você nunca leu Chimamanda Ngozi Adichie, recomendo que comece com Hibisco Roxo, o mais leve e mais direto de seus romances. Mas recomendo A contagem dos sonhos com as restrições mencionadas acima.

De cinco estrelas, no máximo eu lhe daria entre três e quatro.  Mas não há meios pontos nesse jogo.  Fico com quatro, em admiração por todo trabalho dessa escritora. 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





As duas irmãs, texto de Chimamanda Ngozi Adichie

21 05 2025
Ilustração, Brian Wambi do livro The Kando Forest Disaster.

 

 

 

“Estavam voltando de uma tarefa que tinham ido fazer na casa da tia Yaaye quando Binta disse para Kadiatou: “Vamos subir nesta árvore”. “Mas meninas não sobem em árvores. E se alguém contar?” “Ninguém vai contar.” “A gente vai cair”, falou Kadiatou. “E vamos levantar”, disse Binta. Era um pé de acácia bem firme, com galhos espalhados como membros, prontos para receber um abraço. O dia estava ofuscante de sol, e Kadiatou prendeu a saia na mão e subiu atrás de Binta, seu coração batendo depressa, receosa de não estar seguindo suas linhas cuidadosas. Ela parou num galho bifurcado, mas Binta subiu mais. Dava para ver os telhados inclinados da aldeia lá embaixo e o vale majestoso banhado numa bruma melancólica ao longe. Ela tinha mesmo subido numa árvore, estava em cima de uma árvore, bem lá no alto. Que estimulante descobrir que conseguia ultrapassar os limites que tinha imposto para si mesma.Mais tarde, ao descer, Kadiatou sentiu-se feliz por ter subido, mas tinha certeza de que nunca mais faria aquilo de novo. Elas não souberam ao certo quem contou a Bappa Moussa. Ele ralhou com elas e disse que trariam vergonha para a família se comportando daquele jeito, como meninas sem modos. Kadiatou pediu desculpas, enquanto Binta apenas o encarou, carrancuda e em silêncio. E então Kadiatou pediu desculpas várias vezes, para compensar o silêncio de Binta. Aquilo fez Kadiatou se lembrar de que, quando o chefe da aldeia passava, ela o cumprimentava com olhar baixo e respeitoso, enquanto Binta o encarava, levando a irmã a fazer uma mesura ainda mais profunda, como se quisesse compensá-la. Kadiatou sabia se encolher na presença de seus superiores, mas Binta nem sequer sabia que tinha superiores. Mais tarde, Binta disse para Mama: “Eu consigo subir mais alto até do que Bhoye”, e Mama, espalhando pétalas de hibisco num tapete, riu com um brilho nos olhos e disse: “Binta!”. Kadiatou sabia que a mãe a amava por cumprir seus deveres e ser confiável, mas às vezes, secretamente, queria que a mãe a amasse como amava Binta, por ser livre.”

 

Em: A contagem dos sonhos, Chimamanda Ngozi Adichie, tradução de Julia Romeu, Rio de Janeiro, Cia das Letras: 2025