Telefone sem fio, poesia infantil de Dilan Camargo

25 10 2025
E-fone de lata, 2005, por Ivan Cruz

 

 

 

Telefone sem fio

 

  Dilan Camargo

 

O primeiro disse:

“excelente”.

O último entendeu:

“isso é leite”.

 

O primeiro disse:

“Ana de salto alto”.

O último entendeu:

“banana no asfalto”.

 

O primeiro disse:

“abracadabra

palavra mágica”.

O último entendeu:

“água prá cabra

que vai de viagem”.

 





Retrato, poesia de Adalgisa Nery

20 10 2025

Mulher sentada ao espelho

Alberto Micheli (Itália, 1863-1952)

óleo sobre tela, 85 x 57 cm 

 

 

 

 

Retrato

 

Adalgisa Nery

 

Lembro-me desse rosto.

Era risonho mas envolvido numa sombra triste,

Sua voz era clara mas sua língua era tímida, 

Voz de criança que suga o peito materno,

Língua de mulher após duros fracassos.

Sua fonte era larga e seus cabelos dourados, 

Fronte vigiada pelas grandes insônias.

Seus olhos eram vagos,

Vagos em beleza e em fixação.

Tinham nas pupilas o embaciado de que nasceram mortos.

Seu andar era firme e duro

Contrário a toda a fragilidade de seu corpo

Era como o andar do condenado

Subindo para a morte os degraus da guilhotina.

Sua boca era igual

Igual a tantas bocas de mulher,

Apenas depois de seus sorrisos tristes

Notava-se nos lábios um rito de amargor. 

Suas mãos eram

Mãos grandes, secas e vividas, 

Mãos que afagaram em silêncio

Muitos corpos amados horas esquecidas.

Suas mãos eram como bocas, como olhos, 

Como vozes, com vida independente

Antes do corpo ser adolescente.

Eram mãos velhas e tristes

Eram como olhos vividos em pranto.

Às vezes com um movimento de inocência

E logo depois tomavam atitude de degradação.

Eram mãos que usavam alma emprestada

De dedos longos e inquietos

Como inesperados movimentos de serpente

E mudavam-se às vezes num suave tremor de seios de virgem

Tonteada em amor.

Sobre a vida do corpo desse rosto não direi mais nada

Não sei se era boa ou má

Se era maldita ou abençoada

Porque talvez essas formas destacadas que meus olhos viram

Fossem  um sonho ou outra visão qualquer

Ou possivelmente seja meu

O retrato dessa mulher.

 

(1948)

 

Em: Mundos oscilantes: poesias completas, Adalgisa Nery, Rio de Janeiro, José Olympio: 1962





Trova do jardineiro

19 10 2025
O jardim, ilustração de Pierre Brissaud,1926, para a revista House & Garden, mês de outubro.

 

 

 

Sou jardineiro imperfeito,

pois, no jardim da amizade,

quando planto um amor-perfeito,

nasce sempre uma saudade…

 

 

(Adelmar Tavares) 





Trova dos professores

15 10 2025
Desconheço a autoria.

 

 

Professores são abelhas

distribuindo, em seu afã,

os polens que são centelhas

das flores de um amanhã!

 

(João Paulo Ouverney)





“Infância”, poesia de Manuel de Barros

13 10 2025

Bicicleta de Paraty, 2008

Arluce Gurjão, (Brasil, 1968)

óleo sobre tela, 30 x 40 cm

 

Infância

 


Manoel de Barros

 

Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando… pingando das árvores…
Um regador de bruços no canteiro.

Barquinhos de papel na água suja das sarjetas…
Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato.

Um peixe de azebre morrendo… morrendo, em
dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis, aos bois.

 

 





Trova do pião

9 10 2025
Cadê? Chico Bento procura… ilustração Mauricio de Sousa.

 

Nos meus tempos de menino

tinha na palma da mão

a fieira do destino

nas voltas do meu pião!

 

(Antonio Claret Marques)





Trova da criança

6 10 2025

Quando criança eu queria

crescer dez anos num mês

e, agora, o que não daria

pra ser criança outra vez!…

 

(Elton Carvalho)

 





Bucólica Nostalgia, poema de Adélia Prado

6 10 2025

Casario

Antonio Ferrigno (Itália-Brasil, 1863 – 1940)

óleo sobre madeira. 35 x 27 cm

 

 

 

Bucólica Nostalgia


Adélia Prado

Ao entardecer no mato, a casa entre

bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,

aparece dourada. Dentro dela, agachados,

na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,

rápidos como se fossem ao Êxodo, comem

feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,

muitas vezes abóbora.

Depois, café na canequinha e pito.

O que um homem precisa pra falar,

entre enxada e sono: Louvado seja Deus!





Da minha mesa de trabalho

29 09 2025
Na foto:
Montesquieu, Cartas Persas (leitura vagarosa, aparecerá muitas vezes por aqui)
André Giusti,  Só vale a pena se houver encanto
Oscar Nakasato, Ojiichan
Byung-Chul Han, No enxame

 

 

 

Muita gente me pergunta a razão de eu não postar mais dos meus próprios poemas ou ler no Instagram, onde leio uma poesia por dia (@escritora.ladycewest). Sou uma escritora vagarosa nas poesias.  Não que eu seja particularmente preciosista, ou não admita mudanças, mas não sou de chegar ao computador e colocar um poema por dia.  Mesmo os pequeninos levam algum tempo.  Talvez seja a inexperiência.

Mas há outro impasse: quando sou chamada para participar de uma antologia, quando me pedem uma contribuição; quando acho que um escrito merece entrar num concurso, todos os organizadores pedem que o trabalho seja inédito.  Inédito infelizmente quer dizer que não tenha aparecido em qualquer mídia antes. E a maioria considera a publicação em blog, principalmente um blog como este que tem visibilidade, muitos visitantes.  Logo, logo, uma pesquisa na internet e poema, conto, crônica  com o meu nome aparece,(também meu nome é fácil de achar), então é considerada obra já publicada, eliminando a possibilidade de colocá-la em outros canais.  Este ano já participei de 2 antologias e ano passado de outras duas com contos e poesias.  

Mas devo lançar meu próximo livro de poemas em 2026.  Então, aos poucos irei colocando um ou outro poema por aqui. Aí a explicação.  Boa noite. 





“Hiato”, poema de Ladyce West

29 09 2025

Casal comendo próximo à janela,1655

Frans van Mieris, o Velho (Holanda, 1635-1681)

óleo sobre madeira, 36 x 31 cm

UFFIZI, Florença

 

 

 

Hiato

 

Ladyce West

 

Contrariando a física

o tempo parou,

sugado por falha geológica

no descontínuo rolar das horas.

 

Lacuna espelhada na rua deserta

no som suspenso dos carros parados

no intervalo forçado de planos, projetos

breque em desejos, ambições e caprichos.

 

O inimigo invisível por todo lado.

Sombra ou sol, chuva ou névoa,

no ar respirado na cidade, ele impera.

 

Parou o mundo.  Em casa

à janela, abraçados, teimamos

na extravagância do viver.

(Junho, 2020)