Interior, 1947
Yoshiya Takaoka (Japão-Brasil, 1909-1978)
óleo sobre tela, 50 x 40 cm
Ojiichan é um pequeno livro de grande impacto, repleto de entrelinhas que contam. É o segundo livro do escritor Oscar Nakasato que leio. Meu primeiro, Nihonjin, foi o que o levou ao Prêmio Jabuti, de ficção em 2012, um dos mais importantes prêmios literários do país. Reconhecimento merecido. O novo livro foi escolhido para discussão em novembro, pelo meu grupo de leitura, e teve, coisa rara, 100% de aprovação. Todos os membros ficaram encantados. Ojiichan, que em japonês quer dizer avô, abre a narrativa no dia 8 de julho de 2014, onde coisas importantes acontecem na vida de Satoshi, o brasileiro morador do Paraná, que completa setenta anos naquele dia. Por isso mesmo, ele se despede da escola onde passou as últimas décadas como professor, vítima das regras da aposentadoria compulsória pela idade. Sente-se ainda cheio de vida, com muito a dar, apto a continuar ensinando. Mas não consegue nenhum jeitinho de permanecer na ativa. Nesse mesmo dia ele tem outra surpresa. Tampouco boa. Não costumava apostar em futebol, mas antes da final da Copa do Mundo, induzido pelo constrangimento de ter dito que achava que a Alemanha poderia ganhar o campeonato, acaba fazendo a aposta contrária e vê, com surpresa, o resultado do jogo Brasil-Alemanha, confirmando sua suspeita, quando o time da casa perde de goleada. É o reflexo perfeito do que Satoshi sente dentro de si. Ainda nos momentos iniciais do livro acompanhamos sua viagem, de retorno da cidade de São Paulo, uma viagem de pêsames à irmã, viúva recente. Mas ao chegar em casa descobre que a jabuticabeira que havia plantado no jardim, há mais de trinta anos, havia sido derrubada, a mando de Cecilia, sua filha. Estranha o jardim sem a árvore, sem o aconchego e o prazer que ela lhe dava. Assim é, então, o marcante começo de uma nova etapa na vida do professor. A frase que abre o livro é sucinta, mas nos dá o conteúdo inteiro do que presenciamos. Ela introduz de maneira direta e simples o dilema de Satoshi: “Um homem está velho quando não consideram mais a sua opinião.”
As perdas de Satoshi não se limitam aos acontecimentos narrados acima. Sua mulher, companheira de vida, sofre, há tempos, de demência, perdendo significativamente a memória. Com esse vácuo, vão-se os momentos de companheirismo do casal, as referências mais íntimas. E ainda, mais adiante, Satoshi perde inesperadamente a filha, Cecília, que havia se dedicado a cuidar da mãe doente. Essa é a perda que o faz forçosamente reestruturar a vida. Novos rumos, inesperados, o levam a sair de casa e mudar-se para um apartamento, o primeiro de sua vida, um lugar apertado, para onde não consegue levar nem mesmo seu cachorrinho Peri. Em um pequeno espaço de tempo, tudo que conheceu, tudo para o qual trabalhou, se desfaz. Uma nova vida, nascida a fórceps, com diferentes estruturas, surge. Satoshi aprende à medida que ela se desencadeia.
Apesar da série de reveses que poderiam contribuir para tornar a velhice, suas perdas naturais ou acidentais em um texto pesado ou melancólico, temos, em seu lugar, uma narrativa meditativa, delicada, tão contida quanto seu personagem principal e pontuada por realizações bem elaboradas que leitores leem mais de uma vez e sublinham e marcam: “o tempo trapaceia, encolhendo-se ou se dilatando sem a permissão do homem.” [61] ou “a sexta-feira vale, principalmente, pela expectativa que se cria com relação ao sábado.” [140]. Oscar Nakasato presenteia o leitor com um livro, de meras cento e sessenta e oito páginas, repleto de ponderações perspicazes ao nos mostrar a paulatina adaptação de Satoshi à nova vida, descobrindo a pluralidade das maneiras de viver que percebe à sua volta. Ele consegue preservar a seriedade e dignidade que lhes eram naturais, ainda que surpreenda o leitor a cada virada da nova vida, tomando caminhos nem sempre esperados. Há neste homem um delicioso assombro ao se deparar com pessoas distintas e verdadeiro desejo, ainda que sutil, de se adaptar a circunstâncias que não imaginara ao talhar sua existência. A chegada ao condomínio, onde dois terços do livro se passa, é marcada por esse momento em que ao abrir a janela ele se depara com a vida de outros, de vizinhos que se ocupam de maneira variada e ainda assim familiar ao que o rodeia. “Satoshi foi à janela aproveitar a última claridade do dia e observar mais uma vez o condomínio. Sentia-se um pouco constrangido em adentrar os apartamentos da torre Flamboyant através das janelas e das cortinas descerradas” [73] E por vezes, em sua demência, Kimiko, a esposa que parece não ter um pé na realidade, ecoa de maneira direta aquilo que Satoshi, não chega a expressar, mas que sabemos ser próximo do que sente, como quando ela pergunta: “Onde é aqui?” [73], logo após o casal se mudar.
Para os que estão familiarizados com a literatura brasileira, este é um livro repleto de menções abertas e discretos acenos literários. Alguns autores são citados claramente, às vezes acompanhados pelos títulos de suas obras: José de Alencar, Machado de Assis, Milton Hatoum, Raduan Nassar foram semeados através da narrativa. Ocasionalmente referências vêm indiretamente como nos nomes daqueles que rodeiam Satoshi: a filha Cecília e o cachorrinho Peri, saídos diretamente de O Guarani de Alencar. Aurélia outra heroína do mesmo autor, do livro Senhora é mencionada abertamente. Outras alusões são bem mais discretas quando, por exemplo, parafraseia o poeta Ferreira Gullar: “…e fantasiava a vida porque a realidade não lhe bastava.” [159]. Essa riqueza de texto aparece também em ligeiras sugestões culturais, como na cena em que Suzana sai do banho enrolada numa toalha, na ocasião em que Satoshi aparece para uma de suas visitas regulares. Essa é uma referência indireta a passagem bíblica do Livro de Daniel, comumente conhecida comp “Suzana e os anciãos’, cena fartamente retratada na arte ocidental por Tintoretto, Rembrandt, Rubens e outros. Essas menções culturais, brasileiras ou universais, enraízam a obra no seu meio cultural, dando riqueza ao texto e prazer a quem o lê. Esses detalhes, essas insinuações, andam ausentes na literatura contemporânea das listas dos mais vendidos, mas são um bálsamo que regala a leitura cuidadosa, traz sorrisos de reconhecimento aos lábios do leitor, comunhão com o escritor e ainda alerta para a conexão das coisas, para o elo invisível que delineia o perfil da cultura retratada.
Oscar Nakasato
É difícil dar ideia da enormidade de temas, descrições, ponderações que esta leitora sublinhou, marcou, escreveu, anotou. De muitas, deixo aqui a deliciosa descrição que Altair, um vizinho de Satoshi, faz sobre o jogo de xadrez: “O peão precisa ter uma paciência maior que os outros, dizia meu pai. Ele poderia, um dia, mudar sua condição humilde, mas deveria dar seus passos com muito cuidado. E todos tinham regras a cumprir. Não se via no tabuleiro uma torre traçando a sua vida por um caminho diagonal, nem um cavalo seguindo em linha reta. A rainha era poderosa, seus privilégios não eram contestados.” [103]. E dessa maneira, com amigos que nunca pensou fazer, mesmo mantendo parte de seus hábitos e rituais, como continuar a jogar gateball com antigos amigos aposentados, Satoshi renasce, adaptado às novas circunstâncias. É uma nova vida. Ele passa a observar com maior cuidado o seu redor, aqueles e aquilo que o rodeia e pondera: “Mas não é assim o amor, uma reinvenção a cada abraço?” [94] A velhice para Satoshi trouxe limitações inesperadas, mas o mundo também se ampliou, e há luz naquele horizonte descoberto. Esse é um livro que nos deixa esperançosos. Que nos tira dúvidas, eleva pensamentos, satisfaz. Leia. É ótima literatura. Literatura com letra maiúscula.
Recomendo sem restrições.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.







