Homem lendo à luz de lampião
Adrien Hebert (França-Canadá, 1890-1966)
óleo sobre tela
Terminei hoje a leitura de As filhas moravam com ele, uma coleção de contos do escritor e jornalista André Giusti, [Nova Lima, MG, Editora Caos e Letras: 2023]. Há muito tempo não me dedicava a um grupo de contos com tanto prazer. Para mim, contos, crônicas e poesia são coletâneas que leio aos poucos, um texto por dia, porque por serem pequenos, em geral, entregam muito, já que não podem se perder na narrativa. Todos os três gêneros têm a habilidade de causar impacto rápido e certeiro. E isso acontece com as histórias deste autor carioca, radicado em Brasília.
Giusti traz contos enraizadas no desvario que nos rodeia e que sem querer assimilamos ao viver numa grande cidade, hoje. Ele retrata a insensatez que nos instiga, corrompe, empurra e muitas vezes atraiçoa na vida cotidiana. Constante nessas vinte histórias é a incredulidade da pessoa de bem que quer simplesmente tocar a vida com calma, segurança e bom-senso. Invariavelmente nos vemos nos personagens das histórias. Se não nos vemos, conhecemos alguém que entra direitinho naquele perfil. No entanto, frequentemente as situações em que elas se encontram, mesmo que corriqueiras, trazem consequências inesperadas, quase absurdas, que as deixam pasmas, beirando a inércia. E fica o profundo sentido de frustração permeando as histórias; pois não é raro, diante de uma consequência imprevisível, que a resposta do homem comum seja apenas uma série de impropérios que aliviam só de modo superficial os desatinos que encontrou.
Vale salientar que André Giusti não é um iniciante no trato da palavra. Jornalista por profissão e autor de pelo menos doze livros, ele traz na sua narrativa algumas preciosas imagens e descrições diretas que não deixam dúvidas sobre sua capacidade de dizer exatamente o que pretende. Cito aqui dois exemplos, o primeiro pela divertida e carinhosa descrição de uma mulher: “Mariana ri com os olhos levemente vesgos e intensamente alegres. Os olhos de Mariana parecem esquilos escapulindo por árvores de um parque.” [110] E em segundo lugar, um exemplo da maneira direta com que nos conta muita coisa com apenas uma frase: “Para desfazer o possível constrangimento real, Robério toma um grande gole de chope, arrota sem conseguir ser discreto e anuncia que tem novidade: vai ser avô, e faz uma cara que nos deixa em dúvida se ele acha bom ou ruim. [60] Estas maneiras variadas na escrita revelam completo domínio da arte. É narrativa que seduz o leitor.
André Giusti
Não sei se estou certa ao dizer que a escrita de Giusti tem o tom do carioca. Penso que ele foi para Brasília, mas que o Rio de Janeiro não saiu dele. Ritmo, irreverência, diálogos e filosofia de vida de seus personagens parecem saídos dos meus vizinhos, dos meus conhecidos, dos meus ouvidos. Mas além disso, sinto nessa coletânea o retrato de como está realmente dura, difícil de gerenciar a vida nos nossos dias, sobretudo o cotidiano do homem, daquele que só pretende levar uma vida comum, de conhecedor de alguma coisa, de vivenciador de algumas belezas e tristezas, de cidadão que quer acertar na educação da filha, no romance com a mulher, no convívio no emprego. Em nenhum momento, que fique claro, isso é explícito nessas histórias. Mas ao terminar a leitura, repassando o que li, fica essa consideração: está difícil manobrar a vida com as exigências que nos foram impostas, a impaciência geral e a intransigência generalizada. Você quer um retrato da vida de hoje? É aqui que vai encontrar.
Recomendo sem qualquer objeção a leitura desse delicioso livro. Cinco estrelas.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.








