“Uma amor inigualável”, texto de Olivier Bourdeault

27 06 2017

 

 

Cid Morrone (Itália, 1956) leitura, ostLeitura

Cid Morrone (Itália, 1956)

óleo sobre tela

 

“Seu comportamento extravagante preenchera toda a minha vida, ele viera se aninhar em cada recanto, ocupava todo o quadrante do relógio, devorando cada instante. Acolhi essa loucura de braços abertos, depois os fechei para apertá-la com força e dela me impregnar, mas temia que uma loucura mansa como esta não fosse eterna. Para ela, o real não existia. Eu tinha encontrado um Dom Quixote de saias e botas, que, toda manhã, com os olhos recém-abertos e ainda inchados, pulava sobre seu pangaré, freneticamente lhe batia nos flancos e saía a galope para investir contra seus distantes moinhos cotidianos. Ela conseguira dar um sentido à minha vida, transformando-a numa balbúrdia perpétua. Sua trajetória era clara, tinha mil direções, milhões de horizontes,  meu papel consistia em fazer a intendência seguir, em cadência, em lhe dar os meios de viver suas demências e não se preocupar com coisa nenhuma. Quando na África avistamos uma grou ferida à beira de uma trilha, ela desejou pegá-la para cuidar dela. Tivemos de prolongar nossa estada uns dez dias, e depois, uma vez a ave curada, ela quis trazê-la para Paris, mas não entendeu que era preciso obter certificados, cobri-los de carimbos, assinaturas, preencher montanhas de formulários para passar pela fronteira.

— Por que todas essas maluquices? Não me diga que toda vez que essa ave sobrevoa as fronteiras tem de preencher este formulário e deve aguentar todos esses funcionários!  Até a vida dos pássaros é um calvário! — ela vociferara, exasperada, enquanto batia com o carimbo na mesa do veterinário.”

 

Em: Esperando Bojangles, Olivier Bourdeault, Belo Horizonte, Autêntica: 2017, tradução de Rosa Freire de Aguiar, páginas 45-6.