Assim é se lhe parece, “Estação Atocha”, de Ben Lerner, resenha

19 07 2015

 

salado, madriPlaza Carmen, Madri, c. 1962

Juan Bayon Salado (Espanha, 1903-1995)

óleo sobre tela,  60 x 73 cm

 

 

Sem citar Assim é se lhe parece, de Pirandello, Ben Lerner evoca a trama teatral do autor italiano em Estação Atocha, quando tudo à nossa volta pode ou não ser o que parece. Nesse livro seguimos as aventuras de um possível poeta americano [será que ele é mesmo um poeta?] se embrenhando nas complicações da vida na Espanha, onde reside graças a uma bolsa de estudos, para a qual havia inventado um tema de pesquisa que não tinha intenção de levar avante. Esse não é o único logro da história, nem o primeiro, mas um de uma série de desonestidades, cometidas por todos os personagens num desfilar de pequenas fraudes sem fim.

 

atocha

 

Aventuras de viagem não são tema raro na literatura, nem recorrentes dúvidas de uma pessoa criativa sobre sua própria criatividade. Tampouco é novidade a sensação de se andar em pantanal, de afundamento a qualquer momento, quando usamos uma língua que não dominamos. Mas todo o resto dessa narrativa é diferente nesse pequeno romance. Porque estamos diante de um manifesto sobre as incongruências da nossa percepção, da percepção dos outros e como exploramos a maleabilidade e a diversidade de pontos de vista, das muitas possíveis verdades, para nosso próprio benefício. As referências às artes plásticas, o sentar e observar um quadro por horas até que saia de foco, são claros indicadores dessa preocupação do autor, senão, qual seria a razão de termos algumas fotografias ilustrando um romance? Ben Lerner mostra que somos todos poliedros. Que temos muitas faces. Que face nossa mostramos ao mundo? Vai depender da nossa vontade. Vai depender da nossa audiência. Que face nossa o mundo vê? Também vai depender de como eles querem nos perceber. Por que não ajustar a história pessoal, a narrativa de vida, de acordo com cada situação? É justamente nessa linha entre o que se acredita ser verdadeiro e o que poderia ser, entre as diversas opções de realidade, entre os mitos que criamos a nosso respeito, nossa história pessoal, que trafega o personagem principal, numa viagem mercurial, entrando e saindo do submundo dos sonhos ao mundo da realidade, tudo incrementado pela névoa perpétua que domina sua mente permanentemente drogada.

 

ben lernerBen Lerner

Ben Lerner não poderia ter levado o romance ao fim não fosse sua intrigante e sedutora voz narrativa: uma combinação de Virginia Woolf e monólogos humorísticos como os recitados na comédia em pé. Por vezes cômico, outras mais filosófico, o texto faz uma afinadíssima crítica aos intelectuais, aos poetas, aos apreciadores das obras de arte, aos demonstradores políticos profissionais, todos encontrados em qualquer grande cidade do mundo, em qualquer Meca da cultura. A fina ironia aparece autodirecionada e simultaneamente reveladora como crítica de costumes.

A narrativa é feita pelos olhos do jovem poeta americano Adam Gordon em busca de experiências novas. Seus poemas usam o pastiche de poemas de outros poetas. Larápio de palavras que traduz, modifica e reusa; punguista de ideias, usa as reticências do silêncio para ser percebido como profundo pensador. Questiona-se sempre sobre sua fraude. E não perde a habilidade de perceber, ou de questionar a possível desonestidade dos outros. E assim, mais cedo ou mais tarde, aprende que o comunista filho de pais ricos que vai à Estação Atocha demonstrar às vésperas da eleição, não vota no partido comunista, com a desculpa de que quer que as coisas fiquem ainda piores. Recebe um email de fundação que o financia, agradecendo sua participação em um debate, cujo convite não havia aceitado. Quando sugere que quadros em uma galeria sejam cobertos em pano preto em sinal de luto pelos mortos em um atentado terrorista, observa que os visitantes da galeria, olham para os quadros cobertos com grande intensidade, encontrando neles significado além do intencionado. Em todo canto, a toda hora, não só o nosso poeta anti-herói engana a si mesmo e a outros, mas também percebe a trapaça ou burla dos outros. Este é um romance divertido, com grande voz narrativa, que leva a uma ponderação sobre temas psicológicos e de comportamento social com a leveza do humor. Recomendo.


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4 responses

21 07 2015
Gilberto

Todo mundo parece ter criado grandes expectativas sobre este livro, fico feliz que vc tenha gostado, já que tem bom gosto, ai fica fácil eu saber que é bom 😉

21 07 2015
peregrinacultural

Gilberto, o mais engraçado é que hoje saiu no jornal O GLOBO, uma página inteira sobre esse livro. Lendo, não acreditei que eu e o resenhista tivéssemos lido o mesmo livro. As coisas em que prestei atenção não foram as mencionadas no jornal. Impressionante. Vou colocar o link aqui para vc ver.

21 07 2015
Gilberto

Ficou estranho o do O Globo, sei lá parece que ela fez vários apontamentos diversos, sobre autor e obra e foi só costurando e não se arriscou muito a teorizar ( e argumentar sobre isso).
Se fosse redação do ENEM eu tirava nota dela, com a observação fugiu / não teve foco.

22 07 2015
peregrinacultural

Boa! Vai ser um bom professor!

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