Alois Heinrich Priechenfried (Áustria, 1867-1933)
óleo sobre tela, 35 x 58 cm
A inveja, pecado mortal, fonte segura dos sentimentos mais complexos no ser humano, é o tema central desse pequeno romance (seria melhor chamá-lo novela, no sentido literário da palavra, ou seja um conto longo que não chega a ser um romance) titulado A acompanhante de Nina Berberova (Rússia, 1901- EUA,1993). Para os amantes de literatura russa essa escolha é perfeita, em estilo, prática, tema e complexidade emocional a autora, só descoberta por aqueles que não leem em russo, nos anos 80 do século passado, quase 30 anos após emigrar para os Estados Unidos, tornando-se cidadã americana.
Publicado no Brasil em 1997 pela Imago, só agora, participando de um grupo de leitura cujas obras precisam ter menos de 150 páginas, cheguei a esse exímio retrato psicológico de Sonetchka uma pianista jovem, pobre, bastarda, competente e feia. Isso não sou eu quem diz, mas um personagem que, sem interesse secundário em suas habilidades na música, a leva para jantar e diz: “Você é gentil, muito gentil. Tão feia e tão gentil. Tão pequena e tão feia” [81]. Como se sente então essa jovem diante da cantora Maria Nikolaevna Travina, mulher atraente, enigmática, sedutora, portadora de uma bela voz, que lhe deu emprego, comida, roupas e uma vida fora da miséria em que nascera? Grata por ter sido reconhecida como competente? Feliz por ter um emprego que a tira da pobreza profunda? Fascinada com a oportunidade de sair da Rússia, ir a Paris? Não. A inveja a domina.
Sonetchka não consegue ser generosa e apreciar o que de bom acontece na vida de sua patroa. Muito pelo contrário gostaria de destruir esses bons eventos. E não se livra tampouco dos preconceitos da sociedade russa, nem mesmo depois de deixar o país para trás. Não consegue se desfazer do complexo de inferioridade alimentado por ser filha de mãe solteira; por sentir que repetirá a vida de subsistência de sua mãe. Julga aqueles que a salvaram de um futuro incerto e faminto pelos rígidos parâmetros da mesquinhez. E a bela cantora que a salvara de um futuro abismal é o fruto de um ódio murmurante, impiedoso, abrigado na alma de sua acompanhante.
“Mas eu não notei nada, nada exceto aquela espécie de doçura que ela tinha, e de vez em quando um olhar incerto. De novo, ela era gentil e atenciosa com Pavel Fedorovich, de novo trabalhava muito e com aplicação; por períodos ela se embelezava de modo impressionante, e continuava sua existência com segurança e total liberdade. E eu sentia que sumia cada vez mais do lado dela, enquanto ela crescia como cantora e, física e espiritualmente, se aproximava de uma espécie de ponto focal de sua vida, ponto que poderia fazer durar por muitos anos, com sua inteligência, sua beleza e seu talento. ” [85]
Não é suficiente alimentar o asco, torcer para que as coisas não se resolvam, não é suficiente imaginar o que faria para desmascará-la. O ódio que sente contra a bela e generosa cantora, precisa machucar. É preciso ferir Maria Nikolaevna Travina do mesmo modo que Amy, a mais jovem das irmãs em Mulherzinhas de Luísa May Alcott, precisa queimar o manuscrito de Jo, quando não pode ir a teatro. Não bastava sentir raiva, era necessário machucá-la, feri-la, naquilo que entendia ser sua fonte de poder. Com Sonetchka o mesmo acontece. Mas a vida lhe rouba até mesmo a oportunidade de ser central no evento que mudará a vida de sua patroa. Traída mais uma vez pelas circunstâncias a acompanhante mergulha em sua própria sopa de fel.
Uma poderosa narrativa, surpreendentemente detalhada para tão pequena obra. Vale a leitura.