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A vida, 1903
Pablo Picasso (Espanha, 1881 – 1973)
Óleo sobre tela, 196 x 129 cm
Cleveland Museum of Fine Arts, EUA
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Não me surpreende que Michela Murgia tenha ganhado diversos prêmios literários na sua terra natal, a Itália, com o livro Acabadora. Sua escrita é poética, sensível, retrata uma realidade que sabemos verdadeira apesar de parecer um sonho enevoado e o faz com sedução, guiando o leitor pela mão, a ponderar sobre a vida, seu valor; sobre o que é bondade; a morte, a traição, a eutanásia e a dignidade humana.
Passado em uma pequena vila da Sardenha, na década de 1950, o romance está centrado nas figuras de Bonaria Urrai e Maria Listru. Maria foi adotada. Quarta filha de uma família pobre com muitos filhos é dada à Bonaria para educá-la. Bonaria tem uma vida dupla de costureira durante o dia e de facilitadora da morte, para aqueles que se encontram em seus últimos momentos de vida. Este segundo ofício é conhecido e aceito por todos os habitantes do vilarejo. Mas não é falado. Assim Maria cresce sem saber da delicada profissão noturna de sua mãe adotiva. Bonaria é uma boa mãe. Educa Maria em casa e na escola. Tira-lhe o hábito dos pequenos roubos. Incentiva-lhe a aplicação aos estudos. Mas espera o momento apropriado para contar á Maria o que faz nas noites em que sai de casa. Maria descobre antes de Bonaria lhe contar. Descobre por outros, e sentindo-se traída, quando se vê como a única no vilarejo que não conhecia o ofício de Bonaria, não perdoa a velha senhora. E se afasta. Há pelo menos dois sentimentos que Maria tem que resolver: o desgosto pelo que Bonaria faz, e a traição.
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O mais interessante dessa narrativa é que não somos levados a questionar a retidão de caráter de Bonaria. Ela é dura, honesta, resistente à adversidade, rígida, fiel a seus princípios morais. Conhecedora, como ninguém, dos personagens do vilarejo, Bonaria não tem dúvidas sobre a necessidade de seu ofício. E não vacila ao aplicar a sua ética. Os vizinhos concordam em silêncio, assim como todas as outras pessoas no vilarejo. Bonaria, afinal, traz paz aos que dela necessitam. Bonaria, no entanto é seduzida a se desviar de sua ética uma única vez, e é justamente nesse momento que Maria descobre a profissão de sua mãe de criação.
A rejeição de Maria à Bonaria é imediata. Mas por muito tempo ficamos sem saber se esta rejeição é por se sentir traída, não sabendo tudo sobre sua mãe de criação, ou se é por rejeição completa ao ofício de Bonaria. Não importa, eventualmente, Maria chega a uma solução que não desmerece tudo que aprendeu com a velha senhora. E faz as pazes com os parâmetros de sua existência.
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A minha reserva quanto ao livro está justamente nos capítulos em que Maria, deixando a Sardenha, consegue um emprego como babá. Não pareceram viáveis. Foi uma maneira da autora resolver alguns conflitos internos de Maria, mas os personagens não parecem críveis, não convencem. Pena. Cento e sessenta páginas e um discurso poético que seduz, encanta e corta, pois obriga o leitor a ponderar sobre seu posicionamento sobre dignidade humana, na vida e na morte. Sobre a dignidade da vida quando o ser humano sofre uma limitação física acabrunhadora. Um belo texto.
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