Rudyard Kipling no Rio de Janeiro

4 04 2013

Bruno Bronislaw Lechowski (1887–1941),Praia de Copacabana, 1936

Bruno Bronislaw Lechowski (1887-1941)

aquarela sobre papel

Almocei hoje com um amigo vindo de uma Europa cheia de neve e frio, onde o tempo insiste em prolongar um dos piores invernos de que se teve notícias por aquelas bandas.  Sua alegria de voltar aos trópicos foi contagiante e me lembrei também do tempo em que morando fora do Brasil, chegava aqui de visita à família e me encantava até mesmo com o Galeão, porque reconhecia o colorido das folhas verdes da Ilha do Governador e o cheiro do material de limpeza do aeroporto.  Isso só acontece quando se tem muita saudade mesmo!  Voltei para casa e fui correndo dar uma olhadinha em um texto de Rudyard Kipling sobre o Brasil,  um escritor amante dos trópicos, da Índia e de outros lugares também abençoados.  Re-encontrei esse livro na semana passada quando passei em revista meus livros.  Sabe aquela crença: vamos nos desfazer de algumas coisas para dar espaço para outras melhores?  Pois ando nessa vibração, talvez seja a necessidade de contribuir para que o status quo desembeste, mude, saia da mesmice.   Não consegui achar o texto de que me lembrava, mas achei esta introdução ao Rio de Janeiro que considero charmosa.  Espero que vocês gostem.

“Nos países sensatos, não há pressa, nem mesmo para a Saúde ou a Polícia do Porto. Por isso, embora houvéssemos entrado no porto do Rio no começo da tarde, já estava começando a escurecer quando nos aproximamos do cais e toda a cidade e as costas ao lado dela escolheram esse momento para acender constelações e vias-lácteas de desenfreada eletricidade.

Subiram então a bordo homens dispostos, como os homens do mundo inteiro, a mostrar a um estrangeiro a cidade que amavam. Dentro de dois minutos, as linhas escuras dos cais repletos tinham desaparecido e o carro corria por uma avenida cheia de luzes e fortemente quadriculada por filas duplas de folhagem das árvores e marginada e clubes, lojas e cafés iluminados e repletos. Esse mundo de luz cedei lugar de súbito, entre os topos de edifícios gigantescos, a espaços ainda mais vastos de avenidas de pista única, entre árvores, tendo a baía de um lado e franjadas de luzes elétricas que corriam para a frente aparentemente para sempre e se renovavam em colares de pérolas atiradas em volta de cantos indivisíveis. E sempre, acima de tudo, viam-se e sentiam-se os contornos das montanhas cobertas de matas. Todo o mundo estava conosco em carros todos cheios de gente sem chapéu, todos em velocidade máxima, mas não mais rápidos do que certos diabólicos ônibus cujos barulhos funcionais eu iria confundir depois com o trovejar de um aeroplano diante da minha janela no oitavo andar. À nossa direita, um morro cujas luzes profusas subiam e se interrompiam, indicando a meio curvas de caminho.  Conheciam-se bastante os velhos romances para saber que aquilo devia ser Santa Teresa, o bairro onde os funcionários virtuosos e os amantes exilados pelo destino costumavam viver para refazer as suas fortunas. É hoje, como sempre foi, um lugar de aprazíveis residências. Está diante exatamente da entrada da barra – dois lisos dentes de crocodilo de rocha nua que muitos olhos devem ter visto a fechar o caminho para a pátria no tempo em que os homens morriam entre o meio-dia e o crepúsculo. Há visões de casas brancas e cor de rosa com plumas de palmeiras sobressaindo ou, ainda com maior intimidade, frisos de bananeiras tranqüilas por trás de muros de marfim. Ficamos, porém, à beira da água, com a multidão que estava tomando fresco.

A noite estava, razoavelmente, isto é, tropicalmente quente. Chapéus, sobretudos, pressa, hora e outras insignificâncias tinham ficado do outro lado do Equador. A única preocupação que restava era de que aquela cidade de sonho, de folhagem verde intensamente iluminada, de imponente estatuária e montanhas altaneiras desaparecesse de repente se a gente tivesse a coragem de olhar para o lado.  Mas continuou, com uma enorme curva de caminho sucedendo a outra, ainda contornando o mar, ainda iluminada pelas luzes insolentes e onipotentes mas – deve-se pagar algum tributo aos deuses – impregnada do perfume dos carros que voavam. (Deve-se notar que o brasileiro, como motorista, pode paralisar qualquer chofer de taxi da Place de La Concorde. Os sulistas ciumentos dizem que um argentino pisando leva-lhe vantagem. Para mim, ele é mais que suficiente.)

Por fim, a torrente do tráfego se desviou da baía, entrou por um túnel ressoante onde todos buzinavam ao  mesmo tempo e foi sair numa extensão de praia em que as ondas livres do Atlântico Sul se alinhavam sob as estrelas  e se quebravam nas areias de cor de marfim ao pé dos refletores elétricos. Todos os que não estavam sobre rodas passeavam em miríades em calçadas de mosaico junto ao mar. Diante da praia, viam-se casas isoladas cujos proprietários deviam ter perdido a cabeça em todos os detalhes, arrebiques, caprichos, atributos e curiosidades daquilo o que se chama de “arquitetura” e que seus cérebros ou suas posses podiam abranger. E desde que as construções não se pareciam com qualquer outra coisa na terra, ajustavam-se exatamente ao inexplicável cenário que sob os altos céus os contemplavam.

— O nome desta praia é Copacabana – disseram meus companheiros.  – Não faz muito tempo que começou a ser construída. Não. Isso não é a cidade. É apenas um dos seus distritos. A cidade fica a muitos quilômetros de distância. Ainda há muitas outras praias pela frente, mas…”

Em: Cenas Brasileiras: um documento inédito — a presença de Kipling no Brasil, Rudyard Kipling, tradução de Pinheiro de Lemos, Rio de Janeiro, Record: [1977?], pp. 37-38