–
–
O Clóvis vem aí, 1977
Aloysio Zaluar (Brasil, 1937)
óleo sobre madeira
–
21 de fevereiro [1939]
–
Hoje, terça-feira gorda, é o dia dos préstitos das grandes sociedades e, pelos anúncios de página inteira com evoés e versalhada, haverá muita alegoria estadonovista com subvencionados ouropeis, que os míopes poderão tomar como realidades estadonovistas. Que saiam! A estas horas já devem estar na rua, enguiçando nas curvas mais fechadas, com suas fanfarras, com suas encarapitadas deidades seminuas, que Aldina tão doidamente invejava, com seus fogos-de-bengala deixando acessos de tosse na esteira. Aqui permanecerei distante de tanta beleza. Um toque de incubada melancolia acordou comigo, comigo esteve o dia inteiro como uma dormência – refuguei a leitura, refuguei o rádio, a vitrola, a conversa, a visita dos amigos, dormitei quanto pude, entreguei-me sem resistência ao devaneio, algo doce, algo de prisioneiro, pescador à beira do escuro mar com cantos de sereias.
Luísa não compreende a súbita névoa, que a convivência é caixa perene de surpresas:
— Que é que você tem, filhotinho?
— Também não sei, querida. Também não sei.
E certamente estaria falando a verdade. Há verdades que se falam.
–
Em: A Mudança, segundo tomo de O Espelho Partido, Marques Rebelo, São Paulo, Martins:1962.






Deixe um comentário