Domingo passado estive numa festa de aniversário de duas amigas: mãe e filha. A mãe completava oitenta anos e a filha marcava os cinquenta. Foi uma bonita comemoração: família e amigos reunidos numa sessão dupla de felicidade. Na saída, os convidados receberam uma mini licoreira com o licor italiano à base de avelãs, Fra Angélico, favorito da aniversariante mais velha. A garrafinha veio protegida por um saquinho de organza com cartão marcando as datas das aniversariantes e a frase: A vida é um eterno recomeço. No dia seguinte à noitinha, me preparei para degustar o licor, rememorando aquele momento. A bebida me acompanhou na leitura de A vida secreta das árvores de Peter Wholleben. Essa noite tornou-se especial, fiz duas coisas deliciosas: ler e degustar o licor; Um momento em que me voltei para o passado sobre licores, seus usos e como, no presente, licores praticamente desapareceram de minha vida.
Memórias me levaram à casa de meus avós maternos. Naquele Rio de Janeiro era mais comum as pessoas receberem amigos em casa. Não necessariamente durante o final de semana, nem estou falando de grandes festas. Mas visitas durante a semana, à noite, depois do jantar, quando a mesa já havia sido retirada, e sobrava tempo para minha avó se sentar com o jornal da manhã, lápis em punho, para completar suas palavras cruzadas. Era o sinal para meu avô se esconder no escritório, uma sala não muito grande, coberta por estantes de livros, encapados com papel pardo, etiquetados e enfileirados em prateleiras protegidas por portas de vidro de correr. Minhas memórias desse escritório, ficaram para sempre marcadas pelo perfume de tabaco. Lá, era onde meu avô dava uma cachimbada noturna, impregnando o ar com o perfume doce, delicioso, do fumo, que era guardado solto em um pote de vidro hermético, difícil de abrir, mantido ao lado do umidor onde ele que guardava charutos para ocasiões especiais.
Eram noites comuns. Nada de especial: não eram aniversários, nem ocasiões extraordinárias. Mas de quando em quando, meus avós recebiam uma ou outra visita na semana. Os visitantes chegavam por volta das vinte horas, depois do jantar, vestidos no que hoje acharíamos trajes muito formais. Homens na maior parte do tempo sozinhos para conversar com vovô. Vinham de terno e gravata. Se trouxessem suas esposas, elas também vinham vestidas de modo igualmente formal, perfumadas, com bolsas dependuradas no antebraço. Essas eram as roupas que se usava para sair e visitar amigos. Mas ao contrário do que se possa imaginar, elas não faziam as conversas mais formais. Não. Eram conversas entre amigos, falavam de coisas comuns. Riam-se. Falavam de política, do governo, do trabalho. Brincavam entre si, e comigo, a neta mais velha da família e sabiam meu nome direitinho, ainda que eu não participasse dos encontros, sentada com um livrinho de colorir, ou até mesmo um gibi num canto caladinha, sem que me atrevesse a conversar sem ser chamada.
Natureza morta com licor Bénédictine, garrafas e taças, 1919
George Mosson (França-Alemanha, 1851-1933)
óleo sobre tela, 55 x 63 cm
Nessas ocasiões os amigos de meus avós eram direcionados ao jardim de inverno, uma grande varanda, fechada com janelas de vidro, repleta de plantas tropicais altas e mobiliário vindo de São Paulo de madeira teca, resquícios de sua longa estadia a trabalho naquele estado. Na varanda, havia uma mesa pequena para duas pessoas em um canto onde os homens se sentavam, frente a frente, onde vovô, em outras ocasiões, também jogava damas comigo e vovó, para não ficar para trás, me ensinou a jogar Burro e Memória, com o baralho. As senhoras, quando vinham, se sentavam em poltronas também de madeira com almofadões de flores diversas. Vovó trazia uma bandeja com copinhos para licor, que nada mais são do que taças de vinho liliputianos. Junto, vinham duas ou três garrafas de licores diversos, europeus. Servia cafezinho também, acompanhado de açucareiro e pequeninas colherinhas de prata. Não havia preocupação com açúcar, nem havia, que eu saiba, adoçantes industrializados. Essas bebidas eram o bastante para a conversa rolar por algum tempo. Quando o som do relógio carrilhão da sala adjacente batia dez da noite, naquela longa melodia inglesa do Big Ben, as visitas ou já haviam saído ou estavam no final das despedidas, prometendo verem-se de novo em breve.
Vovô era de Mato Grosso, estado que ainda não havia sido dividido em dois. Aqui no Rio de Janeiro, existia uma verdadeira colônia de mato-grossenses alguns remanescentes da ditadura de Vargas, que havia recebido apoio de pessoas influentes daquele estado, principalmente na campanha de Getúlio para o desenvolvimento da região centro-oeste, conhecida como ‘Marcha para o Oeste’. Outros, como meu avô, mandados pelas famílias para estudarem no Rio de Janeiro, que simplesmente permaneceram na capital do país, casados com cariocas, trabalhando por conta própria, na indústria ou empregados do governo. Desterrados, procuravam o consolo do sotaque típico da região e referências às famílias conhecidas que representavam. Quando vovô recebia amigos de lá, o esquema era o mesmo, mas os licores servidos eram diferentes: as frutas reinavam, ainda que eu me lembre de uma bebida de folha de figueira, mas serviam licor de pequi, banana e outro, cujo nome me causava acessos de riso desenfreado: furrundu. Até hoje tenho um sorriso indomável quando me recordo dessa bebida. O licor de pequi era meu grande conhecido, porque na prateleira mais baixa da cristaleira de vovó, onde ficavam as garrafas de licores, refletidas no espelho ao fundo do móvel, a garrafa de pequi brilhava como nenhuma outra com seu líquido dourado e a mágica da fruta inteira lá dentro.
Taça de licor, laranja, par de dados
Daniel Montoya Neiderbach (Espanha, contemporâneo)
óleo sobre placa, 31 x 23 cm
A bebida também foi consumida quando visitas chegavam na casa de meus pais. Depois que meus avós morreram, lembro que não se precisava mais de visitas formais para os licores virem ajudar a comemorar a ocasião. A formalidade na cidade já estava se dissipando. Mamãe e minhas tias serviam licores às amigas, às irmãs, quando jogavam cartas à tarde ou se reuniam numa tarde de aniversário. A bebida muitas vezes era acompanhada de algum bombom requintado, mais frequente, no entanto, de uma torta de chocolate, nozes ou bolo de amendoim. Durante o final dos anos setenta e a década de oitenta passada era comum quem viesse de viagem internacional, trazer de presente uma garrafa de licor para um membro da família ou um amigo: Fra Angelico, Cointreau, Baileys entre outros. Não consigo precisar uma data quando na minha família perdeu-se esse hábito. Talvez a idade da geração de meus pais, talvez preocupações com saúde, ou até mesmo altos e baixos econômicos do país possam ter contribuído para isso. Visitas à noite, no meio da semana também rarearam, aconteciam principalmente entre membros da família, meu pai visitando seu irmão, meus tios vindo para um abraço rápido de congratulações pelo aniversário de alguém. Aos poucos perdeu-se o ritual do licor como gesto de boas-vindas.
Tudo mudou nos últimos quarenta anos. Às vezes precisamos de um gole de licor de amêndoas para considerar as mudanças sociais por que passamos. Devo à minha amiga Rose, e a comemoração de seus oitenta anos, essa pausa para reflexão e viagem pelas memórias de infância.
©Ladyce West, Rio de Janeiro, junho 2025.







