Resenha de “As fúrias invisíveis do coração” de John Boyne

2 07 2019

 

 

 

AN IRISH VILLAGE by Markey RobinsonUma aldeia irlandesa, ilustração de Markey Robinson.

 

 

Este não foi o mais interessante romance de John Boyne.  É uma história ambiciosa, prolixa,  dramática que poderia ter tido maior impacto se o escritor não tivesse sucumbido à tentação de numerosos detalhes desnecessários e à armadilha comercial de um final feliz. Nesta longa obra o leitor acompanha a vida de um homem, irlandês, gay, nascido logo depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945, de sua gestação à morte. Tomamos carona para acompanhar também mudanças de comportamento social no mundo pós-guerra e as dificuldades enfrentadas pelos homossexuais no mesmo período. Passamos pela Irlanda católica, pela Europa, centrada em Amsterdã, vamos aos Estados Unidos e como não poderia faltar somos levados a considerar alguns aspectos da horrível epidemia da AIDS que se espalhou pelo mundo a partir dos anos 80 do século passado. Definitivamente um projeto audacioso e necessário por trazer para o cultura popular considerações que vemos com maior frequência restritas a obras menos comerciais ou ao nicho da literatura gay.

Como bom escritor, apreciado por multidões,  John Boyne traz ritmo, drama e humor para um enredo que se desenvolve apoiado por uma dúzia de personagens curiosos, quase todos fora da norma, preenchendo a máxima popular comum nos nossos dias: “de perto ninguém é normal.”  Cada um é rebelde à sua maneira. Só o nosso biografado é o único a não se rebelar. Tímido e frouxo Cyril é um anti-herói. É um personagem principal, sem um osso de bravura, covarde e irresponsável,  incapaz de medir as consequências de seus atos para com terceiros.  E é ele quem acompanhamos com cuidado. E a quem devemos, no final, imaginar com carinho, entendimento e calor.  Uma façanha difícil para esta leitora.  O final desaponta.  Muda o tom da narrativa.  Do realismo aspirado durante a história, pulamos para o mundo da fantasia.  A boa vontade do autor traz um fechamento onde se reconhece os bons aspectos de todos os personagens envolvidos, num final feliz característico dos contos de fadas.

 

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Talvez esse livro tivesse me agradado mais se não contivesse tantos erros históricos que demonstram uma pesquisa porca.  Descuidada.  Tive essa sensação algumas vezes até que de repente vejo General De Gaulle da França mencionado como tendo se aposentado em 1959, quando na verdade este foi o ano em que ele começou a presidência da França.  Daí por diante encontrei uma série de problemas.  Há uma visão anacrônica do mundo.  Preocupações sobre o cigarro, limitações de comportamento daqueles que fumam, por exemplo, aparecem como pertinentes nos anos 50-60 quando na verdade o fumo era liberado em todo canto, dentro e fora dos ambientes fechados.  Há o problema de mencionar a República Checa em 1987, quando na realidade, nesta época não havia este país.  O país fazia parte do que se chamava Checoslováquia.  O mesmo para a Eslovênia.  Foi preciso uma série de conflitos, de guerras entre 1989 e 1992 para que os países que formaram, a contragosto, desde 1945 o país Iugoslávia, voltassem a ser independentes como eram antes do domínio comunista, sob o comando do ditador Tito. Não há perdão para esse tipo de erro.  E esses não são os únicos erros.  Passando em revista outras resenhas em sites de livros e resenhas, vejo que tenho companhia, dezenas de outros leitores listaram muitos outros detalhes incôngruos.

 

boyneJohn Boyne

 

Um escritor tão popular quanto John Boyne tem a obrigação de trazer fatos históricos corretos.  Se ele não quer fazer a pesquisa, tenho certeza de que poderia pagar um assistente para verificar dados.  Não posso liberar de culpa a editora original, porque ela também deveria ter tido o interesse de checar esses detalhes.  Muitos leitores adquirem conhecimentos de história através de livros.  É um desserviço para com seus leitores que Boyne não se preocupe em limpar o texto.  Sinto, mas perde muito com isso.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.





Resenha: “Uma história de solidão”, de John Boyne

7 09 2016

 

 

georges-croegrtDistrações

Georges Croegaert (França, 1848-1923)

óleo sobre painel de madeira, 27 x 22 cm

 

 

Há dias, soube que crianças expostas a barbáries têm problemas de memória, coisa que acontece como consequência de violência doméstica, pobreza, fome, guerra.  Crianças refugiadas frequentemente apresentam esse trauma.  Sei também que a memória, mesmo que a pessoa não tenha sido exposta  aos horrores descritos acima, consegue ser  seletiva.  Muitas vezes a memória esconde o que não se quer saber.  Isso, às vezes, é o que acontece com pessoas  que consideramos ingênuas.  Seus mecanismos de sobrevivência não as deixam ver por trás da cortina de fumaça que o cérebro desenvolveu para viver em paz. Foi por esse ângulo que interpretei a incrível ingenuidade de Odran Yates, padre irlandês, protagonista de Uma história de solidão.

Esta é uma história sobre a construção da nossa própria história, da nossa imagem.  O que escolhemos esquecer ou lembrar ao construirmos a nossa biografia?  Odran Yates foi levado ao sacerdócio por sua mãe.  Até o passado recente não fugia ao normal que famílias católicas dedicassem um de seus filhos — sem considerar as propensões individuais — à Igreja.  Mas Odran Yates não vê um problema nisso.  Depois de testemunhar um ato de violência em sua própria família, acaba por se convencer de que a vida sacerdotal lhe caía bem. Tornou-se padre da igreja católica, na Irlanda, cheio de esperança e ambição.  Gostava de ser professor no Terenure College, e de cuidar com esmero da biblioteca do local. A vida era confortável, mas melhor ainda, ele se sentia útil. A narrativa cobre desde sua chegada ao seminário na década de 1970 ao ano de 2013.  Tudo começa a mudar quando Odran Yates se depara com a força brutal do colapso da igreja católica irlandesa, quando casos de abuso sexual são revelados.

 

 

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Quando é mandado para uma paróquia onde o amigo e colega seminarista, Tom Cardle, havia sido padre e começa a perceber que o mundo idealizado que ele criara para si,  não existia.  Quanto ele havia ignorado propositadamente para manter seu próprio conforto emocional?  Confrontado com o passado, reconhece eventualmente sua participação nos crimes de seu amigo, porque não tomou a atitude correta, por ter sido permissivo com seu silêncio e vontade de não ver problemas onde eles existiam.  Quarenta anos depois de sua entrada no seminário, Odran Yates, um padre honrado,  vê seu amigo e companheiro seminarista ser julgado,  seus colegas mandados à prisão e a vida de muitos de seus paroquianos destruída pelas revelações de abuso sexual pelo clero.

 

 

John Boyne pic mark condren august 2008John Boyne

 

Este foi meu primeiro livro de John Boyne.  Fiquei feliz de encontrar nele um escritor sério, cuja voz narrativa segura o leitor através do texto.  Sua escrita é cuidada.  Usa a sutileza de maneira incisiva para tratar de assuntos difíceis e desagradáveis.  Ocasionalmente seu texto é repetitivo, principalmente aquele que lança a isca para acontecimentos futuros.  Mas no todo, esta é uma excelente leitura.

 

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