Morrer, poema de Ivan Junqueira

9 06 2023

Mensageiro do amor, 1885

Marie Spartali Stillman (Inglaterra, 1844 -1923)

aquarela, têmpera, folha ouro sobre papel colado em  madeira, 81 x 66 cm

Museu de Arte de Delaware

 

 

 

Morrer

 

Ivan Junqueira (1934-2014)

 

Pois morrer é apenas isto:

cerrar os olhos vazios

e esquecer o que foi visto;

 

é não supor-se infinito,

mas antes fáustico e ambíguo

jogral entre a história e o mito;

 

é despedir-se em surdina,

sem epitáfio melífluo

ou testamento sovina;

 

é talvez como despir

o que em vida não vestia

e agora é inútil vestir;

 

é nada deixar aqui:

memória, pecúlio, estirpe,

sequer um traço de si;

 

é findar-se como um círio

em cuja luz tudo expira

sem êxtase nem martírio.

 

 

Em: O tempo além do tempo: antologia, Ivan Junqueira, organização e prefácio, Arnaldo Saraiva, Vila Nova de Famalicão, editora Quasi:2007, p.71





Esse punhado de ossos, poesia de Ivan Junqueira

5 01 2023

De longe, próximo, 1937

[From the Faraway, Nearby]

Georgia O’ Keefe (EUA, 1887-1986)

óleo sobre tela, 91 x 101 cm

Metropolitan Museum

Esse punhado  de ossos

 

Ivan Junqueira

 

Esse punhado de ossos que, na areia,

alveja e estala à luz do sol a pino

moveu-se outrora,  esguio e bailarino,

como se move o sangue numa veia.

Moveu-se em vão, talvez, porque o destino

lhe foi hostil e, astuto, em sua teia

bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia

o que havia de raro e de mais fino.

Foram damas tais ossos, foram reis,

e príncipes e bispos e donzelas,

mas todos a morte apenas fez

a tábua rasa do asco e das mazelas.

E ali, na areia anônima, eles moram.

Ninguém os escuta. Os ossos não choram.

 

Em: O Tempo além do Tempo, Ivan Junqueira, organização e prefácio de Arnaldo Saraiva, Editora Quasi, Vila Nova do Farmalicão: 2007, p, 108