A chegada… texto de João Felício dos Santos

25 05 2015

 

 

PORTINARI Família real (chegada)2A chegada da Família Real à Bahia, 1952

Cândido Portinari (Brasil, 1903-1962)

Painel, óleo sobre tela, 381 x 580 cm

Banco BBM, Rio de Janeiro

Obra executada para decorar uma das salas da sede do Banco da Bahia, Salvador, Bahia.

 

 

“E foi o desembarque.

Conde da Ponte, o fiel, o velho, o prudente governador, já bem prevenido  — pelos ingleses — da vinda de tantos hóspedes importantes, havia providenciado tudo, da melhor forma que lhes fora possível.

Até bom suprimento de água potável e para a limpeza geral (tão urgente para quem trazia dois meses de carências e desconfortos), já se acumulava em tinas, pipotes e barris pelos quatro cantos da cidade enfeitada em ansiedades.

Do interior da província chegavam, a cada instante, as coisas mais inesperadas como reforço suplementar de manutenção.

Na subida da Montanha, ladeira por onde começara a desfilar o séquito real em emperrados trânsitos, sinos bimbalhando folganças em toda a redondeza, espalhava-se grosso povo em guardadas roupas (militares, frades, escravos, mucamas…) de domingo.

Mendigos.

Buscando evidências de importante separação, nobres da terra, de espadins e chapéus de fivela, desviavam seus cavalos, apeando-se com graça estudada nos requintes pretensiosos, de cima de seus selins ornados pretensiosamente com muita prata de lei. — Era a colônia a querer dar a nota de sociedade esmerada em preciosismos de educação. Nos becos onde sapateiros e outros ambulantes já haviam topado sítios bons para ver o desfile, acoitavam-se vendedores de comida com seus tabuleiros asseados em panos da costa e de rendas.

Nenhum local próximo andava devoluto. A população primava em berrantes presenças.

No adro da Conceição da Praia (sinos refrescando alegrias), estacionavam palanquins e serpentinas profusos em ouros, tetos de esmalte pintados ao gosto do tempo do senhor D. José, e cortinas riscadas de seda-china.

Os estufins e liteirinhas guardadas por dentuços moleques escravos, jogando aius na areia do chão a canela varrido, maganos moleques de tricórnios de plumas, casacas azuis, luvas branquinhas de anil e potassa nos fios de Escócia, ufanamente de pés no chão; os estufins e liteirinhas, nas festas ingênuas da colônia em sorriso, abrigavam a curiosidade espantada de muitos olhos negros, peludos olhões da rica mestiçagem na terra brotada.

Botinas-gracinhas, atacadas até aos tornozelos morenos, sacudiam impaciências do lado de fora, pelas frestas das sanefas ciosamente corridas.

Impaciências também ondulavam nas escondidas ancas armadas das senhorinhas passageiras enquanto escondiam assanhamentos, amuadas pela demora do cortejo.

E afogavam os ligeiros peitinhos cheirando a macela-alfazema, aperreados nos sonsos decotes dos espartilhos marotos da Europa importados. …”

 

 

Em: Carlota Joaquina a rainha devassa, de João Felício dos Santos, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira: 1968, pp:65-66

 





A chegada da família real, texto de Paulo Setúbal

18 08 2014

 

 

Família real (chegada)2A chegada da família real a Salvador, 1952

Cândido Portinari (Brasil, 1903-1962)

Óleo sobre tela

Pinacoteca da Associação Comercial da Bahia.

 

“O bergantim real, alcatifado de coxins de veludo, com o seu belo toldo de damasco franjado, atracou debaixo do mais quente ribombo de festa. O povo espremia-se no cais. Milhares de espectadores, com avidez mordente, o coração aos saltos, contemplavam, fascinados, a embarcação garrida. Tudo queria “ver o rei”. O Conde dos Arcos, que então governava o Brasil, correu a abrir a portinhola: e do bergantim, muito ataviada de garridices, desceu lustrosamente a família real. Era D. João VI em grande gala. Era D. Carlota Joaquina, com seu fuzilante diadema de predarias. D. Pedro, o herdeiro do trono, principezinho de nove anos, muito vivo, os cabelos crespos e negros, saltou acompanhado de Frei Antônio de Arrábida, o preceptor. Seguia-o o irmão mais moço, o infante D. Miguel, todo de veludo, calças compridas, o gorro apresilhado por um fúlgido broche de pedras. As princesas vinham enfeitadas com primor. Muito lindas. Vestiam sedas dum azul pálido, enevoadas de arminho, com grandes diamantes nas orelhas e altos trepa-moleques nos cabelos. Viera, também, galhardo e belo, um moço arrogante, muito simpático, olhos romanticamente verdes: era o Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, infante da Espanha, sobrinho dos regentes.

No cais, fora armado um altar. D. João e D. Carlota, seguidos pelo príncipe e pelos infantes, ajoelharam-se diante dele. O chantre da Sé tomou da água benta e aspergiu ritualmente os reais hóspedes. Tomou do turíbulo de prata e incensou-os  por três vezes. D. João, com fervorosa compungência, caiu então por terra: beijou o Santo Lenho. A corte, prosternando-se, acompanhou-o no beijo tradicional. Depois, ao longo do cais, formou-se um séquito de honra. Lá ia a bandeira, lá ia a cruz, lá iam os nobres, lá ia o clero, lá ia a gente da terra. No meio das alas, carregado pelo Senado da Câmara, franjado de ouro, rutilando ao sol, um imenso pálio de seda: e, debaixo dele, com os seus atavios carnavalescamente vistosos, a deslumbrar a colônia, toda a família real.”

 

Em: As maluquices do Imperador, Paulo Setúbal, São Paulo, Clube do Livro: 1947, pp: 14-15.