A Inveja em texto de Teolinda Gersão

11 09 2014

 

 

Talbot Hughes - The New DressO vestido novo, s/d

Talbot Hughes (Inglaterra, 1869-1942)

óleo sobre tela, 57 x 41 cm

 

 

“Por sorte, logo no início tinha havido um acaso que viera dar força à versão que lhe convinha: Dora Flávia mandara-lhe coser um pedaço da bainha de um vestido, no lugar onde o fio rebentara. Era já tarde e ela tinha perguntado se podia fazer esse trabalho em casa. Dora encolhera os ombros, era-lhe indiferente, não precisava do vestido agora.

Assim, levara-o consigo, deixara-o toda a semana pendurado no quarto da costura. E no meio das provas, mencionava sempre que tinha que acabá-lo, antes de quarta-feira. Era da dona da casa no Sommershild.

Em geral nem sequer era ela a puxar a conversa. O vestido falava por si, atraía logo os olhos das freguesas.

Deixara-o ali como um talismã que a livrasse, e ela do mundo dos armazéns baratos d’ A Feira ou do Lorenzo Marques Mercantil, na rua dos Irmãos Roby. Como se o vestido, suspenso da cruzeta, fosse o sinal exterior de uma mudança.

Só na terça-feira seguinte, à noite, lhe coseu a bainha. Difícil, porque a mousselina parecia desfazer-se nas mãos. Mas era também um prazer tocar-lhe — suave, leve, se havia tecido vaporoso era aquele.

Vestiu-o da própria depois de pronto. Um corpo tão parecido, as medidas iguais, ficava-lhe até melhor a ela, achava-se tão mais bonita do que Dora. Mas os vestidos pertenciam a umas, e não a outras mulheres. Mesmo quando uma mulher os talhava e cosia com as suas mãos eles pertenciam a outra. As vidas não se trocavam.

Dora nunca lhe pagaria o preço justo por nada, soube. Ninguém lhe pagaria. Nem ela poderia explicar. Se tentasse, neste caso, enumerar os problemas em volta do vestido, falaria da textura tão leve que parecia areia movediça, onde os alfinetes e a agulha escorregavam sempre, e Dora assentaria, distraída, com um movimento de cabeça, julgando que ela queria justificar um acréscimo no preço por esse trabalho extra,  diria, sim, sim, impaciente, sem ouvir, porque tanto lhe fazia pagar um pouco menos ou um pouco mais, e no fundo essa conversa aborrecia. Nunca poderia dizer-lhe que o problema não tinha sido o trabalho, mas aquele nó na garganta, como uma mão de ferro, que a deixava sem ar.

Podia fazer um vestido assim, pensou ainda, rodando levemente sobre si própria no espelho. Saberia fazê-lo, tal e qual, nem um ponto a menos. Mas o que parecia uma coisa próxima, concreta, era ao mesmo tempo impossível, irreal.  Mesmo que houvesse ali à venda aquele tecido e ela tivesse dinheiro para comprá-lo (duas coisas já de si improváveis), nunca teria ocasião de vesti-lo, porque não tinha acesso aos lugares onde esse tipo de roupa se usava.

Despiu-se devagar, no espelho. Como pudera, alguma vez, ter-se alegrado,  com as idas a  Sommershild, com o que dentro de si, na euforia do primeiro momento, chamara “a época do Sommershild”. Como pudera ser tão louca. Acreditar que uma mudança acontece só porque alguém passa a ir regularmente a um lugar.”

 

Em: A árvore das palavras, Teolinda Gersão, São Paulo, Planeta: 2004, pp 86-87.