Colecionadores, por José Saramago

17 02 2025

O colecionador

Charles Spencelayh (Inglaterra, 1865-1958)

óleo sobre tela, 25 x 24 cm

 

 

“Pessoas assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo ou o tempo que creem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas, jarrões, bilhetes postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas desportivas, autógrafos, pedras, bonecos de barro, latas vazias de refrescos, anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos, caixinhas de música, garrafas, bonsais, pinturas, canecas, cachimbos, obeliscos de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval, provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega o dia de ela se dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do colecionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se.”

 

Em: Todos os nomes, José Saramago

 





Vollard: colecionadores de arte americanos

30 07 2024

Moça de verde sob o sol, c. 1914

Mary Cassatt (EUA, 1844-1926)

óleo sobre tela,  55 x 46 cm

Museu de Arte de Worcester, MA, EUA

 

 

 

O Sr. Havemeyer era aconselhado nas suas compras por Mary Cassatt. Ela o havia persuadido que não havia melhor maneira de gastar seu dinheiro, já que  as obras de arte que comprava iriam enriquecer o patrimônio artístico dos Estados Unidos.  Eu me lembro especialmente de dois quadros de Goya que ela o fez comprar, quando ele viajava pela Espanha: uma senhora com um anel em seu dedo, e, melhor ainda,  A sacada.  Eu disse para uma senhora americana, cliente minha: “Se continuar assim, logo teremos que ir à América para ver o que há de melhor na pintura europeia.”

 

(Tradução: Ladyce West)

 

Em: Recollections of a Picture Dealer, Ambroise Vollard, Dover Fine Art, History of Art, 2011, edição eletrônica, sem menção do tradutor do francês para o inglês.

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Mr. Havemeyer was usually advised in his purchases by Mary Cassatt. She had persuaded him that he could make no better use of his money, since his pictures were to enrich the artistic heritage of the United States. I particularly remember two pictures by Goya that she made him buy when he was on a trip through Spain: a woman with a ring on her finger, and, best of all, The Balcony.   I said to an American lady, a client of mine: “ If this goes on, we shall soon be obliged to go to America to see the best European pictures.”





Leituras de 2022: “Sobretudo de Proust”, de Lorenza Foschini, resenha

10 09 2022

Retrato de Lindy Guiness, 1965

Duncan Grant (Grã-Bretanha, 1885-1978)

óleo sobre madeira, 60 x 50 cm

Não foram só perdas, tive ganhos durante a pandemia.  Um deles foi ler cinco volumes seguidos de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, não acabei, mas progredi bastante. Até então, havia lido duas vezes o primeiro volume dos sete: No caminho de Swan.  Primeiro, há muito tempo, quando estudava para o doutoramento em história da arte.  Centralizando meus estudos na arte moderna, entre 1863 e 1945, Proust era leitura obrigatória, pelo menos o primeiro volume, para melhor entender a sociedade da virada do século.  Muito mais tarde, reli o mesmo volume na preparação de um curso sobre Proust e a cultura da virada do século, tendo como eixo essa obra.  Foi um sucesso. Mesmo assim, a continuação do curso, cobrindo outros volumes nunca passou de projeto. Os anos seguiram.  A pandemia chegou.  No primeiro ano, tive tempo e paz para me dedicar de novo à leitura de Proust e voltar a me apaixonar pela escrita, assim como milhares e milhares de pessoas o fizeram através do século XX.

Sobretudo de Proust

Não vou aqui tratar dos encantos da narrativa proustiana, todos já sabem. Prosa minuciosa,  que merece ser lida com cuidado, pausadamente, saboreada.  Sentimos a necessidade de absorver cada vinheta e memorizá-las,como se pudessem agora fazer parte das nossas próprias memórias. Mas há mais.  Proust fascina também por aspectos misteriosos de sua existência, doente, escrevendo na cama; sofrendo dores e observando o mundo à sua volta.  Uma vida enigmática.  Não é de surpreender, portanto, que haja leitores atraídos pela intimidade de  sua vida; pessoas arrebatadas que gostariam de absorver cada detalhe sobre o intrigante escritor.  Esse é o fenômeno retratado em Sobretudo de Proust, ocorrência que toma conta do conhecido industrial e perfumista francês Jacques Guérin,  que move montanhas para conseguir documentos, textos, mobiliário, tudo que se imagine sobre Marcel Proust. Que fique claro, no entanto, Guérin foi capaz de agregar uma respeitadíssima coleção de livros raros e manuscritos de outros escritores como Lautréamont [Isidore Lucien Ducasse] um dos queridinhos dos surrealistas.  Ele foi também figura importante junto aos movimentos artísticos, literários e musicais da primeiras décadas do século XX.

A caminho do Brasil | Portal Anna Ramalho

Lorenza Foschini

 

Sobretudo de Proust: história de uma obsessão literária, de Lorenza Foschini, tradução de Mário Fondelli, mostra a procura, a caça, podemos dizer, do que restou do espólio de Proust.  Jacques Guérin consegue contato com herdeiros de escritor francês, que para sua surpresa, estão paulatinamente se desfazendo, queimando, os manuscritos que receberam com a morte de Proust.  É a cunhada de Proust, Marthe Dubois-Amiot, o personagem mais estarrecedor desta aventura.  Mas a tenacidade de Guérin na procura e retenção dessa papelada dá certo.  Hoje os manuscritos de Marcel Proust sob sua tutela são conhecidos como Cahiers Guérin.

O livro que nos conta essa história é delicioso.  Pequenino, com aproximadamente cem e poucas páginas, é um deleite para quem gosta de mistérios, de livros, manuscritos e papelada em geral.  É também um retrato acurado do colecionador sério, do sentimento que envolve aqueles que se entregam a uma paixão, a um amor, que procuram e retêm objetos de valor, que muitas vezes só eles, colecionadores veem sua importância no momento, esforço pelos qual gerações futuras agradecem. Este não é o primeiro livro da autora sobre Proust.  Talvez sua admiração pelo escritor tenha embalado a narrativa delicada e sedutora que encontramos no volume. Recomendo a leitura, sem restrições.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.