Uma coisa puxa outra…

27 01 2025

Um ourives em sua loja, 1449

Petrus Christus (Flandres, ? – 1475)

óleo sobre placa de carvalho, 98 x 85 cm

 

 

Sou neta, por lado de pai, de joalheiro.  Meu avô, que não cheguei a conhecer, tinha uma joalheria na rua dos Ourives, centro do Rio de Janeiro. A joalheria fechou; foi desapropriada para a abertura da Avenida Presidente Vargas.  Pouco tempo depois meu avô morreu.  Papai dizia que foi por desgosto.  Ele perdera a razão de ser. Havia comprado a ourivesaria em 1910, ano em que se casou. Por algum tempo, depois que faleceu, não sei quanto tempo, meu pai e seu irmão (únicos filhos do casal) administraram o estoque da joalheria, que eles chamavam de loja.  Era uma joalheria à moda antiga, onde se comprava também esculturas de bronze e marfim, grandes espelhos franceses bisotados, relógios de bronze, muitos itens Art Nouveau, alguns Art Déco, ou de períodos anteriores, objetos decorativos de luxo.

Algumas dessas peças vieram parar nas nossas casas.  Cresci com elas, aqui e ali, decorando um canto da sala. em cima de um aparador: uma ou outra escultura em bronze, um ou outro relógio fora do comum; lembro-me de um relógio de bolso para cegos, por exemplo.  Papai, o eterno professor, sempre nos ensinava: a diferença entre bronze e petit-bronze, os nomes das pedras semi preciosas e suas colorações, as marcas na prata, o que é banho de prata; o que era cristal da Boêmia, e assim por diante.  A gente ouvia com meia atenção como qualquer criança ou adolescente, mas alguma coisa sempre fica. Acredito que esta foi uma bela semente para minha preferência por obras de arte, por perceber, nos dias de hoje, instintivamente objetos de qualidade.  E há, também, a influência de minha mãe que, apesar de professora de línguas neo latinas, se dedicava à pintura. Seu sonho tinha sido ser pintora, mas o pai não achou boa ideia.  Mais tarde, chegou a fazer curso de Belas Artes no Parque Lage na década de 1970.  Eu, no entanto, sou uma negação para pintura ou desenho.

Na Universidade de Maryland, para me formar em história da arte, fui obrigada a fazer dois anos de desenho e pintura, o objetivo era sabermos o processo das diversas facetas da arte.  No último semestre, o projeto na cadeira de desenho foi: 12 ilustrações de um livro de nossa escolha.  Escolhi Cem anos de solidão de Gabriel Garcia Marques que, àquela altura, eu já lera três vezes: em português (aqui no Brasil), espanhol e inglês nos EUA.  Quando recebi a nota final do curso, meu professor de desenho, chamou-me de lado e disse: Ladyce, você está se formando em História da Arte, não é mesmo?, concordei; ele, então, continuou: ótimo, você ganha, então, a nota máxima, pelo esforço.  Mas nunca espere ganhar a vida como artista plástica. Prometi a ele não entrar naquele engodo e ficamos os dois satisfeitos. Mas essa inabilidade nunca me impediu de apreciar e me tornar conhecedora da arte. O interesse por objetos belos, por qualidade, não esmoreceu e eventualmente abri minha própria galeria-antiquário, enquanto morava nos EUA, especializado em mobiliário de fazenda, americano,  do século XVIII e XIX e arte contemporânea, uma combinação esdrúxula que teve sucesso.

 

 

Presidente Donald Trump e sua esposa Melania no baile inaugural de seu segundo termo na presidência dos EUA, e joia de Paloma Picasso, à venda em leilão, na Casa de leilões Bonhams, em 2008.

 

 

Boa memória visual é um dos requisitos para o historiador da arte. É uma habilidade desenvolvida.  Não precisa ser nata, como bem demonstra Malcolm Gladwell no livro Blink: depois de exposto a dez mil horas a um assunto, você sabe instintivamente, da qualidade daquilo que analisa, sem imediatamente saber a razão. Sobre objetos de arte, quer queira ou não, você desenvolve maneiras de reconhecer qualidade, temas ou a mão de um artista. Tudo vai depender dos seus interesses e dedicação.

Levei dois dias para achar, na internet, a joia feita por Paloma Picasso que se assemelha ao desenho da fita preta no vestido da atual primeira dama dos Estados Unidos.  Não sou especialista em moda.  Mas achei o vestido belíssimo.  Ainda que algo na memória me dissesse, já vi esse design em algo de moda.  Paulatinamente fui aprimorando a memória e finalmente cheguei à joia de Paloma Picasso.

Um dos primeiros cursos particulares que dei, aqui no Rio de Janeiro, depois de voltar dos EUA, quando meu marido se aposentou, foi para dois casais brasileiros, que iam à Nova York, pela segunda vez e queriam se certificar do que era imprescindível ver naquela cidade: que museus visitar, que obras arquitetônicas não deixar de ver.  Lá pelas tantas, as duas senhoras do grupo me perguntaram sobre a joalheria Tiffany & Co.  Tinham memórias românticas do encantador filme com Audrey Hepburn, Breafast at Tiffany´s  de 1961, baseado na novela de mesmo nome, publicada em 1958 de Truman Capote. No Brasil, o filme foi titulado Bonequinha de luxo

Um dos aspectos mais interessantes da história da arte é que sempre se acaba falando da história cultural de um país ou de uma época.  Preparei aula extra para elas, com detalhes sobre o histórico da companhia desde sua fundação em 1837, mostrando joias dos catálogos, do passado ao presente.  Entre elas estava o broche retratado acima, conhecido como Scribble [Rabisco], de 1983, desenhado por Paloma Picasso, filha do pintor Pablo Picasso, nascida na França em 1949.  O broche, manufaturado pela Tiffany, tornou-se emblemático dos anos 80 do século passado e da própria joalheria.  Em ouro, 18 quilates, podia ser vendido separadamente ou como parte de conjunto com pendente e anel.  

Se o costureiro Hervé Pierre [Hervé Pierre Braillard] designer francês, naturalizado americano, se inspirou na joia de Paloma Picasso, não tenho ideia.  É possível. De acordo com blogs e escritores da moda, atuais, os anos 80 do século passado andam servindo de inspiração para estilistas. Visitando o Instagram de sua companhia, encontrei o sketch do vestido de Melania Trump assim como o rabisco de seu próprio punho que o inspirou. 

 

Se for o caso, as linhas sinuosas do design do vestido de Melania Trump, já estavam com ele há algum tempo.  Pelo menos uma variante do mesmo padrão apareceu no vestido de noite que ele projetou para o Liberty Ball, parte das festas de inauguração do governo Trump em 2017, como podemos ver na fotografia abaixo. 

Presidente Donald Trump e sua esposa Melania no Liberty Ball inaugurando o  primeiro termo na presidência dos EUA, em 2017.

Como o título dessa crônica revela, uma coisa puxa a outra. Memórias vêm e vão, muitas vezes inconscientes da origem de nossas ideias criativas.  Elas aparecem aqui e ali, pontuando nossa vida, ressurgindo quando menos esperamos, às vezes vindas dos mais inacreditáveis recantos para nos lembrar daquilo que passamos e fomos capazes de reter ao longo dos anos.

©Ladyce West, Rio de Janeiro, 2025