Hábitos que se foram, memórias a partir de “Utz” livro de Bruce Chatwin

14 09 2014

 

 

american-art-artist-paintings-prints-by-louis-moeller-the-connoisseurs-1890-approximate-original-size-18x24Os especialistas [Connoisseurs], 1890

Louis Moeller (EUA, 1855-1930)

óleo sobre tela, 46 x 62 cm

 

 

Há anos me recomendaram a leitura de Utz, um livrinho pequeno de 135 páginas, publicado pela Cia das Letras em 1990, de autoria do inglês Bruce Chatwin (1940-1989).  Recentemente, tive a oportunidade de lê-lo.  É a história de um colecionador de porcelanas Meissen, vivendo em Praga, ainda na época da Cortina de Ferro, que protege a todo custo as delicadas estatuetas das mãos do governo comunista que vê no luxo desnecessário desse passatempo um sinal da decadência da vida no ocidente e da aristocracia checa.  Apesar de interessante a trama me pareceu datada, retratando muito de leve as restrições do governo da República Checa [naquela época Checoslováquia]. A história, portanto, se restringe ao retrato do personagem Utz, um apaixonado colecionador de porcelanas e de cantoras de ópera. É um conto. Não chega a ser um romance.

Mas aqueles que dizem que na leitura estamos sempre nos retratando, admito que à medida que eu avançava no texto, memórias de um tempo antes dos meu dez anos, me rondaram e com elas uma apreciação de como as maneiras e as preocupações mudaram nas últimas décadas do século XX.  O personagem Utz, homem refinado, que aprecia as belíssimas porcelanas Meissen, que passa temporadas na estação de águas em Vichy, na França, e que tenta sozinho manter o brilho da aristocracia checa, lembrou-me um tipo de homem que, se não desapareceu por completo, hoje eu não encontro nos meus círculos.

Meu avô era um homem de muitos amigos e conhecidos.  Advogado, professor, intelectual, escritor e cronista para um diário carioca, cultivou muitas amizades que o visitavam regularmente. Dentre eles havia um que se chamava Prof. Eugênio. Sua figura, que me lembro dos meus oito anos, era a de um homem imponente, alto —  mais alto que vovô, o que, diga-se, não era grande vantagem — sempre bem apresentado em ternos de três peças. Afetava uma bengala.  E quando consultava o relógio de bolso, puxando a longa corrente de ouro,  entre as tragadas de charutos finos e perfumados, mostrava belas abotoaduras mais caprichadas do que os simples quadrados de ouro fosco e brilhante usadas por vovô.   Prof. Eugênio era muito sério e não sucumbia facilmente ao charme da netinha que, encantada com o vovô, insistia em perambular pelo jardim-de-inverno, local preferido para as visitas dos amigos. Foi a figura do Prof. Eugênio que se reacendeu, no corredor das memórias infantis, preenchendo a imagem de Utz, o principal personagem desse romance.

 

Vintage 1930 Prince and Princess Fairy Tale Story Illustration Print by Margaret Evans PricePríncipe e princesa, 1930 ilustração de um conto de fadas de Margaret Evans Price.

 

Provavelmente minha memória, muito vívida, de algumas dessas visitas pode estar enraizada no fato de que as conversas entre eles, quando minha avó não estava junto, eram em francês.  Vovô havia vivido por algum tempo na Suíça, a trabalho,  falava francês fluentemente.  Na verdade é possível que tenha sido escalado para a Suíça, porque falasse francês, já que em seu diário, que está em minhas mãos, usa o francês desde cedo, para as passagens menos públicas, digamos, um pouco mais apimentadas.  Por toda essa vivência e a pluralidade das tarefas que preenchiam o seu tempo, vovô tinha grande variedade de amigos, que o visitavam à noite, após o jantar, num hábito de entretenimento que já desapareceu.  Passei muitos dias na casa de meus avós.  Não só era a neta mais velha da família, como eles também eram meus padrinhos. Com eles aproveitei muito, viajei pelas cidades serranas no estado, pelas cidades das águas de Minas Gerais, visitei São Paulo, duas vezes. Assim estava sempre incluída na rotina de suas vidas, pelo menos era assim que me sentia.

No entanto, a razão principal de me lembrar do Prof. Eugênio era que além dessa figura toda, desse ar diferente dos homens que eu conhecia, da língua francesa ser murmurada como código secreto, além disso tudo, Prof. Eugênio era um príncipe.  Sim, príncipe.  Era brasileiro, mas depois da Segunda Guerra Mundial, no final dos anos cinquenta ele havia comprado o título de príncipe de uma família nobre europeia que precisava de alguns bons trocados.  É claro que, para a criança que já lia os contos de fadas de Grimm, Prof. Eugênio não lembrava nem de longe os príncipes que eu trazia na imaginação. E, me lembro da minha surpresa ao descobrir, não sei como ou quando, que ele possuía esse título.  Prof. Eugênio e Utz são ambos feitos da mesma estopa.  São figuras totalmente anacrônicas que me deixam mesmerizada; o mundo em que viviam já havia se dissipado há muito tempo e mesmo assim eles insistiam em manter pelo menos algumas de suas fantasias. Talvez suas fantasias fossem tudo o que lhes restava.





A Rua do Ouvidor, descrição de Gastão Cruls

1 03 2014

rua do ouvidorRua do Ouvidor, 1844

Eduard Hildebrandt (Alemanha, 1817-1868)

aquarela e lápis sobre papel 36 x 25

Homenagem aos 449 anos da Cidade do Rio de Janeiro

A Rua do Ouvidor

Gastão Cruls

A cada passo, sempre que escrevemos sobre acontecimentos ocorridos no centro urbano, o nome da Rua do Ouvidor pinga-nos da pena. Na verdade, vem de longe o prestígio que essa rua assumiu na vida da cidade e não foi sem razão que ocorreu a Koseritz dizer que o Rio de Janeiro era o Brasil e a Rua do Ouvidor, o Rio de Janeiro.

Todavia, bem poucas artérias terão tido origens tão modestas. A princípio, simples Desvio do Mar, ângulo que fazia a rua Direita, foi por muito tempo apenas uma trilha por onde desciam os carros de bois vindos das freguesias de fora. De 1590 a 1600, chamou-se rua de Aleixo Manuel, um barbeiro português, que também se desdobrava em cirurgião. Assim mesmo, tal designação só pegava o percurso que se fazia da rua Direita à rua da Vala (Uruguaiana). O pequeno trecho que a continuava na parte de baixo, até a praia, era a rua da Cruz, da Santa Cruz ou da Vera Cruz, devido à capela aí inaugurada em 1628, no lugar em que existira um forte e onde está hoje a Igreja Santa Cruz dos Militares. Posteriormente, a partir de 1750, quando nele se inaugurou a Igreja da Lapa dos Mercadores, esse mesmo trecho também foi conhecido por Beco dos Mercadores, Beco da Capela e Beco da Carne Seca.

Vista da Igreja de Santa Cruz dos Militares, Rio de Janeiro RJ. Aquarela de Richard Bates, século 19Vista da Igreja de Santa Cruz dos Militares, RJ, s/d

Richard Bate (Inglaterra, 1775 — 1856)

aquarela

Não tardou, também, que o nome de Aleixo Manuel caísse em esquecimento. É que naquele trato assim designado foi residir um sacerdote, e a rua passou a ser do Padre Homem da Costa. Houve tempo, porém, a partir de 1659, em que a distância entre Quitanda e Ourives foi sucessivamente rua do Gadelha, rua da Quitanda do Pedro da Costa e rua do Barbalho. Concomitantemente, à esquina com a rua Direita cabia denominação especial: Canto de Tomé Dias. Quanto à parte final, que de Uruguaiana vai ao Largo de S. Francisco, só logrou ser batizada depois que, em 1742, foi lançada nesse mesmo largo a pedra fundamental da Igreja da Sé. Era a rua da Sé Nova. E precisamos chegar ao último quartel do século XVIII para que toda a rua, desde o mar até aquele Largo, depois de ter passado por uma toponímia tão variada e fragmentada, se fixasse finalmente no nome que conserva ainda hoje, malgrado uma tentativa frustrada, em 1897, com que se procurou homenagear o Coronel Moreira César, tombado em Canudos. Foi rua do Ouvidor e ficou rua do Ouvidor porque em 1780 nela veio morar o ouvidor Francisco Berquó da Silveira.

Não tornaremos ao comércio de modas e de luxo que poucos anos após a trasladação da corte portuguesa para o Rio e subsequente imigração dos primeiros colonos franceses, pôs logo essa rua em situação de relevância entre as suas vizinhas e dela enxotou, de uma vez para todas, as últimas quitandas que lhe afeiavam o aspecto. Esse comércio de fausto e de elegância, já não só de modas mas dos melhores artigos de todos os gêneros, sempre muito bem valorizados nas suas vitrinas, levou Machado de Assis a chamá-la, muitos anos mais tarde, a “via dolorosa dos maridos pobres”.

Rua-do-Ouvidor-Centro-RjRua do Ouvidor, 2011

Renato Salles (Brasil, )

www.renatosalles.com

Mas não foi só por esse lado que a rua do Ouvidor se distinguiu. Hotéis, confeitarias, cafés também a preferiram e isso muito lhe aumentou a frequência, tornando-a o ponto obrigatória da melhor sociedade carioca. Vários jornais escolheram-na para a sede das suas redações, a começar pelo velho Jornal do Comércio, o Diário do Rio de Janeiro, órgão dos conservadores, A Reforma, de Silveira da Mota, O País, fundado em 1884, e tendo à frente Rui, Quintino e Joaquim Serra, a Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo, a Cidade do Rio, de José do Patrocínio, O Combate, de Pardal Mallet, Luís Murat e Manuel da Rocha, O Globo, também de Quintino, o Diário de Notícias, de Rui e Antônio de Azeredo, A Notícia, de Alcindo Guanabara e Glicério, O Século, de Medeiros e Albuquerque, e muitos outros, que fastidioso fora enumerar.

Tudo isso, excelente comércio, redação de jornais, escritórios de médicos, engenheiros e advogados, fez com que a estreita via pública, de manhã à noite, se enchesse de gente. Aliás, por ser assim estreita, e também longa, era um verdadeiro corredor, sempre sombreado, e onde, mesmo nos dias mais quentes, havia sempre algum ar a respirar. Por outro lado, desde 1867, ela gozou do privilégio, não concedido a nenhuma outra, de só ser trafegada por veículos e cavaleiros até as 9 horas da manhã. Daí por diante, era mesmo do povo, do pedestre, que nela podia andar à vontade, desatento, e desembaraçado. Andar, e também parar, para ver o que se apresentava nos mostruários, ou dar dois dedos de prosa com algum amigo ou conhecido, encontrados eventualmente.  Daí, devido aquelas condições, os grupos que se formavam em plena rua, mesmo ao maior empino do sol. Estava-se ali como num salão. Havia senhoras que só se avistavam quando vinham ao cabeleireiro ou iam experimentar um par de sapatos no Fonseca. Outras que iam juntas ao Wallenstein e, depois, à Notre Dame, ou ao Grão Turco, e acabavam tomando sorvete na Deroche, no Castelões ou no Cailteau. Moças que vinham ao dentista e catavam os namorados pela porta das lojas ou dos cafés.

???????????????????????????????Rua Primeiro de Março, 1907

Gustavo Dall’Ara (Itália, 1865 — Brasil, 1923)

óleo sobre tela, 117 x 98 cm

Museu Nacional de Belas Artes, RJ

Já disse alguém que dois ingleses quando se encontram formam um clube. Entre nós, dois brasileiros, quando se juntavam, iam para um café. Falamos no passado, porque os cafés-expressos vão acabando com o hábito da gostosa conversa fiada que se fazia à volta das mesas do Café de Londres, do Java, do Café do Rio ou do Brito, e do Cascata. O Café de Londres era dos mais procurados e nele trocavam ideia Fagundes Varela, Luís Guimarães Júnior, Adelino Fontoura e Lopes Trovão. Conforme os gostos e as profissões, outros grupos eram certos nesse ou naquele ponto. À porta do joalheiro Farani, fornecedor da alta aristocracia rural, dos Breves, dos Roxo, dos Vargem-Alegre, discutiam políticos, entre os quais Abrantes, Paulino e Cotegipe eram dos mais assíduos. Já a Tipografia Leuzinger atraía os intelectuais estrangeiros, os Taunay, Debret, Grandjean e outros apenas de passagem, como o príncipe Maximiliano, Saint-Hilaire, Agassiz, Rochet. Quanto aos literatos, como era natural, pouco a pouco foram-se encaminhando para a Garnier, onde mais tarde, saindo do Ministério e antes de tomar o bonde para Laranjeiras, assinaria ponto Machado de Assis, cercado de José Veríssimo, Graça Aranha, Alberto de Oliveira, Bilac… Quase defronte ficava o Laemmert, menos visitado, mas que , em 1902, teve a honra de lançar Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Ceatas depois do teatro, e nem sempre em boa companhia, sobretudo para os que saíam do Alcazar ou do Teatro Lírico Fluminense, que ficavam próximos, realizavam-se no Carceller que, já ao tempo de Pedro I, tinha entre os seus habituados a figura do Chalaça, Francisco Gomes da Silva, o indispensável onze-letras do Primeiro Imperador.

Uma estatística de 1862 informa que na rua do Ouvidor existiam 265 estabelecimentos comerciais, assim distribuídos de acordo com a nacionalidade dos seus donos: 91 franceses, 68 portugueses, 35 brasileiros, 4 suíços, 2 norte-americanos, 2 italianos, 1 alemão, 1 inglês e 1 espanhol.

Mas a rua do Ouvidor foi também rua residencial. Aí moraram José Clemente Pereira, Luís José de Carvalho e Melo, depois Visconde de Cachoeira, Gonçalves Ledo. No sobrado em que, ocupando a loja, desde 1870, está estabelecida a Casa América e China, no início do século morava um português, Francisco Saturnino da Veiga, com um colégio onde deve ter aprendido as primeiras letras seu filho Evaristo Ferreira da Veiga. Nesse mesmo sobradão, quando no seu andar térreo ficava a Confeitaria Carceller, nas dependências superiores moravam as irmãs Paracatu, mineiras que se recomendavam pelos seus deliciosos doces secos e em calda e pelas suas inigualáveis desmamadas.

Sylvio Pinto,Vista do Rio de Janeiro,Parte antiga, 1952,OSM, 38 x 30,1.800Vista do Rio de Janeiro, parte antiga, 1952

Sylvio Pinto (Brasil, 1918-1997)

óleo sobre tela, 38 x 30cm

Não houve também acontecimento público de relevância em que a rua do Ouvidor não tomasse parte ativa, fosse festa ou revolta. Por ela passavam as procissões e as sociedades carnavalescas. Vibrou, em 1870, apinhada de gente, ao desfile da brigada do Coronel Francisco Pinheiro Guimarães, tornando dos campos do Paraguai. Formigou, de ponta a ponta, em apoteose a Osório, o herói do Tuiuti e Avaí, quando em 1877, vinha tomar posse de sua cadeira no Senado.

Mas teve também os seus dias de desalento e indignação, de diz-que-diz, ansioso e boataria alarmante, de motim e chinfrineira.  A “Noite das Garrafadas”, a questão Christie, o “Imposto do Vintém”, certos malogros em Canudos, a revolta de Custódio…

Nela,na redação dos jornais, quer pelas suas colunas, quer nos discursos que se faziam das suas sacadas, antes de todos por Patrocínio, na Cidade do Rio, foi que se robusteceu, em grande parte, a campanha abolicionista. Nela, ainda nesses mesmos jornais, ou nas conversas de rua ou de café, encontrou bom eco a campanha republicana.

Em: Aparência do Rio de Janeiro (Notícia histórica e descritiva da cidade), Gastão Cruls, Rio de Janeiro, José Olympio: 1949, 2º volume, pp 420-425. Prefácio de Gilberto Freyre, Desenhos de Luís Jardim.