Mulher sentada ao espelho
Alberto Micheli (Itália, 1863-1952)
óleo sobre tela, 85 x 57 cm
Retrato
Adalgisa Nery
Lembro-me desse rosto.
Era risonho mas envolvido numa sombra triste,
Sua voz era clara mas sua língua era tímida,
Voz de criança que suga o peito materno,
Língua de mulher após duros fracassos.
Sua fonte era larga e seus cabelos dourados,
Fronte vigiada pelas grandes insônias.
Seus olhos eram vagos,
Vagos em beleza e em fixação.
Tinham nas pupilas o embaciado de que nasceram mortos.
Seu andar era firme e duro
Contrário a toda a fragilidade de seu corpo
Era como o andar do condenado
Subindo para a morte os degraus da guilhotina.
Sua boca era igual
Igual a tantas bocas de mulher,
Apenas depois de seus sorrisos tristes
Notava-se nos lábios um rito de amargor.
Suas mãos eram
Mãos grandes, secas e vividas,
Mãos que afagaram em silêncio
Muitos corpos amados horas esquecidas.
Suas mãos eram como bocas, como olhos,
Como vozes, com vida independente
Antes do corpo ser adolescente.
Eram mãos velhas e tristes
Eram como olhos vividos em pranto.
Às vezes com um movimento de inocência
E logo depois tomavam atitude de degradação.
Eram mãos que usavam alma emprestada
De dedos longos e inquietos
Como inesperados movimentos de serpente
E mudavam-se às vezes num suave tremor de seios de virgem
Tonteada em amor.
Sobre a vida do corpo desse rosto não direi mais nada
Não sei se era boa ou má
Se era maldita ou abençoada
Porque talvez essas formas destacadas que meus olhos viram
Fossem um sonho ou outra visão qualquer
Ou possivelmente seja meu
O retrato dessa mulher.
(1948)
Em: Mundos oscilantes: poesias completas, Adalgisa Nery, Rio de Janeiro, José Olympio: 1962






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