Pescaria deliciosa, 1984
Azor Feres (Brasil, 1911-2005)
óleo sovre tela, 50 x 70 cm
“Domingo é dia de pescaria – mas, evidentemente, só para quem sabe pescar. E nem sempre o pescador, armado de anzol, e tendo ao lado uma latinha com iscas, pode desempenhar seu ofício em isolamento semelhante ao daquele colega que, sentado a uma mesa, se dedica a capturar, no improfundável rio da vida, os fugidios peixes do espírito.
O curioso aproxima-se do pescador acomodado sobre as pedras, procura inteirar-se do seu sucesso, faz-lhe perguntas sobre o mar que, cativo de uma enseada, é apenas prateado pedaço de si mesmo, como uma pétala é flor. O homem que se desfatigara no silêncio e na espera sente-se, por sua vez, como um peixe que no fundo das águas, resiste à investida de um anzol dotado de imperdoável engodo. Desejaria não ser agarrado, naquele momento, por voz nenhuma, não beber esse elixir de curiosidade, tédio e convivência que as criaturas servem umas às outras, quando conversam. Diz que o mar está parco, e mostra-lhe o que angariou: uma cocoroca, alguma finas piabinhas cor-de-chumbo, dois gordos peixes-porcos que agonizam estatelados dentro do vasilhame.
E, gratuitamente, ou porque se sentisse na obrigação de dar um esclarecimento suplementar, ou porque não desejasse que o interlocutor o comesse por estreante ou desafortunado, ajuntou:
— Domingo passado, o mar estava melhor.”
Em: Lêdo Ivo, seleção do autor, prefácio de Gilberto Mendonça Teles, São Paulo, Global: 2004, (Coleção Melhores Crônicas- direção de Edla van Steen, “Viagem em torno de uma cocoroca“, p. 133
NOTA: Lêdo Ivo (1924-2012) foi não só um grande poeta, mas um excelente cronista, e também romancista. Precisa ser mais lembrado. Uma das coisas que me encanta sobremaneira na sua prosa é a inteligente criação de palavras que eu imediatamente adiciono ao meu dicionário digital. Além disso aprecio a expansão dos significados que ele consegue dar a palavras já existentes, Nesses três parágrafos que introduzem a crônica “Viagem em torno de uma cocoroca“, vejamos as palavra inventadas: improfundável, desfatigara; a expansão do verbo comer [que o interlocutor o comesse por estreante], parco [Diz que o mar está parco], fora as maravilhosas figuras de linguagem [se dedica a capturar, no improfundável rio da vida, os fugidios peixes do espírito.]; [um anzol dotado de imperdoável engodo] engodo no lugar de isca. Seus textos são assim, riquíssimos de viradas de significados, inesperadamente poéticos. Vale lê-lo.






Interessante: acabei de anotar justamente o “desfatigara-se”
Não é rico, esse texto, Regina? Um achado!
Rico sim. Sem rebuscamento e de leitura cativante.
Estou verdadeiramente encantada com suas crônicas. Lendo uma por dia.