Sincronicidade: lendas arturianas…

26 12 2024

Rei Artur e seus cavaleiros celebrando Pentecostes veem Imagem do Santo Graal,  c. 1475

Manuscrito encomendado por Jacques d’Armagnac, Duque de Nemours (França,1433-1477)

Folio 610v BNF Fr 116

Biblioteca Nacional da França, Paris

 

 

 

Neste Natal dei para meus sobrinhos, a cada um, uma versão diferente, quadrinhos e história para crianças, de um dos cavaleiros da corte do Rei Artur, recentemente redescoberto pelo historiador e escritor Emanuele Arioli, que lançou o livro Segurant: o cavaleiro do dragão, aqui no Rio de Janeiro [Vestígio: 2024] em meados deste ano, cuja palestra assisti encantada na Livraria da Travessa.  Eu havia lido a versão ‘para adultos’ assim que cheguei em casa mas separei em novembro alguns livros para reler nesta semana entre o Natal e o Ano Novo e esse volume foi um dos escolhidos.

 

 

 

 

 

Há dezesseis anos escrevo neste blog.  Os leitores sabem de minhas preferências, até mesmo da leitura de história medieval como passatempo para o momento em que me canso da ficção.  Com frequência digo a meus alunos que apesar de amar minha especialidade, arte europeia moderna [1863-1945] é possível, que se tivesse que fazer tudo de novo, me tornasse medievalista.  Mas eles também já me ouviram mencionar outras opções que igualmente me fascinam, como o século XVII na França, com Luís XIV,  o século de ouro na Holanda…. e provavelmente não me levam mais a sério! Tudo pode me encantar.  A gente ama aquilo que conhece.   Ai, ai, são tantas fases, tanto que ler, aprender, absorver até que se torne um conhecimento que respiro e transpiro… difícil escolha! Mas a época medieval também é problemática, mesmo que se divida em Alta e Baixa Idades Médias. Há séculos e séculos de intrincadas briguinhas, arrufos, compromissos de casamento quebrados,  mortes, assassinatos, traições entre herdeiros, centenas de cidades-estado cada uma do tamanho de um botão de camisa, com regras de comportamento para diferentes classes sociais, para cidadãos ou não cidadãos, leis que variam em poucos quilômetros de distância, restrições religiosas fora e dentro da própria Igreja,  enfim, um mapa do ocidente como uma colcha de fuxicos em que cada retalho representa um domínio com regras próprias. Esse mundaréu sempre me intimidou pela quantidade de informação a ser guardada.

Minha sedução pela Idade Média começou quando cheguei aos Estados Unidos ainda muito jovem. Apesar de ter tido sólida base gramatical da língua inglesa, essa não tinha sido minha língua estrangeira preferencial.  Francês, adquirido através de uma sequência de anos na Aliança Francesa, poderia até ser considerada uma quase segunda língua, porque comecei a aprendê-la aos dez-onze anos. E como meus pais eram daquela geração que lia francês fluentemente, não era raro esbarrarmos em livros franceses em casa.  Em inglês eu não tinha fluência e precisava aumentar o vocabulário urgentemente se quisesse passar no Toefl para completar meus estudos.  Poucos meses depois de chegar a Baltimore, entrei para um grupo de leitura em que a maioria das pessoas era ligada à universidade Johns Hopkins.  Foi uma grande batalha ler os livros escolhidos. Mas enfrentei e ainda li mais do que os que eram pedidos. Desse primeiro ano de experiências em um grupo de leitura, algo que eu não conhecia nem havia ouvido falar dessa maneira de encontrar amigos leitores, dessa época de adaptação à força ao país — e depois disso, sempre frequentei grupos de leitura não importava em que estado ou cidade eu morasse –, três livros,  desse primeiro ano, me marcaram profundamente: Of Mice and Men, de Steinbeck,  The French Lieutenant’s Woman, de John Fowles (que depois me levou a ler The Magus), e The Once and Future King de T.H. White.

 

 

 

 

A imensa fantasia de The Once and Future King sobre o Rei Artur, Merlin e demais personagens da Távola Redonda me seduziu com grande facilidade.  Lembremos que a essa altura eu ainda não era uma historiadora, e havia deixado no Brasil um curso de letras em Literatura Francesa na UFF e dois anos de história da arte com ênfase em semiótica, percepção, filosofia da arte e afins.  Reli The Once and Future King ainda uma vez no mesmo ano em que o conheci.  Daí por diante li diversas lendas medievais. Mas a lenda do Rei Artur sempre terá para mim esse gostinho especial, de achado miraculoso.  E isso foi muito antes de qualquer versão no cinema.

Eis que estou lendo também, o livro Eu vou, Tu vais, Ele vai de Jenny Erpenbeck, que está sendo uma leitura maravilhosa e devo ainda acabá-la antes do final do ano oficial, apesar de tê-la começado no dia de Natal.  Uma das coisas que me encanta nesse livro de Erpenbeck são as referências literárias e musicais que encontramos logo no início da obra: alusões a leituras clássicas e a composições musicais.  Se eu já era uma leitora curiosa, no tempo em que fazia uma lista para depois procurar na enciclopédia ou quando munida do Petit Larousse, que sempre tive ao meu lado nas leitura, procurava um mínimo de informação sobre lugares, personagens históricos ou literários; depois da internet sou compulsiva em consultar dados às vezes até mesmo para verificar se minha memória não me trai.  E diga-se de passagem as leituras no Kindle, onde no momento preciso em que encontramos uma palavra, um fato, menção de um livro,  um local, podemos colocar o dedinho em cima da palavra e imediatamente obter naquele mesmo minuto, alguma informação sobre o que não se conhece, é uma das grandes contribuições ao conhecimento de todos nós, à educação, ao alargamento de nossas visões.

 

 

 

Pois dentre as dezenas de alusões literárias em Eu vou, Tu vais, Ele vai esbarrei numa referência a Tristão do romance medieval  Tristão e Isolda, lenda, que até o renascer da fantasia como uma fatia das obras de ficção contemporânea, andava um tantinho esquecida.  A menção é breve, pelo menos por enquanto; ainda não terminei a leitura, mas aparece assim: “Como Brancaflor, Richard pensa, a mãe de Tristão.” [84] Parei para pensar Brancaflor, não me lembrava que esse era o nome da mãe de Tristão.  Mas cheguei a saber o nome da mãe dele? Deveria saber?  Fui atrás.  A mente da gente é estranha.  Associações às vezes são esdrúxulas.  A primeira coisa que me veio à mente, quando li o nome dessa senhora, foi: “Brancaflor, bonito nome, todo junto, quando poderia e deveria ser escrito separado.  Como o nome daquela mulher aqui do Rio de Janeiro, que mandou matar o marido, que tinha muitos filhos adotivos, mais de dez,  e que esteve nas manchetes da televisão aqui no Rio de Janeiro: Flordelis.” Vai entender a cabeça da gente.  Enfim o romance de Tristão e Isolda é uma lenda medieval, também do ciclo Arturiano. Isolda uma princesa da Irlanda. Para mim, esse romance e mais dois romances famosos, também fizeram parte do meu dia a dia, de outra forma: foram um conjunto de três gravuras do século XIX que decorava na minha casa, na Carolina do Norte, uma pequena parede na entrada de nossos aposentos, Tristão e Isolda, Romeu e Julieta e Paulo e Virgínia: uma lenda medieval, um romance renascentista e um casal francês do final do século XVIII.   Essa trinca foi a leilão antes de nos mudarmos para o Rio de Janeiro.  Isso é outra história, curiosa, mas para outro momento. 

 

 

 

Tristão e Isolda, 1902

Edmund Blair Leighton (Inglaterra, 1852-1922)

Óleo sobre tela, 128 x 147 cm

Coleção Particular

 

 

Houve uma grande volta às lendas medievais nas artes do século XIX, principalmente na Inglaterra, iniciada com o grupo de poetas e pintores Pré-Rafaelitas em meados do século.  Eles exploraram bastante o passado folclórico e contos medievais.  Mais tarde, no final, do século XIX,  já por toda Europa, a pintura histórica abraçou temas românticos com ardor.  Mas esse também é um assunto para outras conversas, pontuações soltas, papo jogado fora, no final de um ano que se encerra.  Certamente voltarei a alguns desses temas. 

O que me levou a pensar em sincronicidade foi perceber e rememorar tantas histórias arturianas à minha volta, em tão pouco tempo.  Referências: dos presentes de Natal que dei, às minhas primeiras leituras no Estados Unidos, à menção de Tristão e Isolda no livro de Erpenbeck, às gravuras no recluso hall de entrada, tudo parece me manter nesse passeio literário circular.  Não estou conseguindo deixar a Idade Média de lado. O tema está no que leio e relembro. Ah, sim, esqueci de mencionar, um fac-símile da lenda de Tristão e Isolda, de uma publicação inglesa do século XVI,  ilustrada por xilogravuras, foi o primeiro presente que meu marido me deu.  Ele certamente conhecia meus interesses e soube me conquistar.

Boas leituras!


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2 responses

27 12 2024
Avatar de Marly Bin Marly Bin

Fã de seus textos, agora aguardo ansiosa outros textos para me deleitar nas suas publicações!

28 12 2024
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Ah, Marly! Que saudade de você” Obrigada, outros virão, dessa forma circular de pensar. Parece que é o que tenho para dar no momento. Uma coisa que leva a outra de tal forma que acabo no ponto inicial… rs… rs..

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