Resenha: Crônicas minhas, de Nancy de Souza

11 08 2024

A modelo, 2023

Jean-Claude Götting (França, 1963)

acrílica sobre tela, 100 x 100 cm

 

 

 

Crônicas minhas de Nancy de Souza é para ser lido e degustado aos pouquinhos.  Porque depois de cada crônica a tendência do leitor é refletir sobre a vida, as mudanças que testemunhamos no do dia a dia; as emoções que algumas memórias nos trazem.  Essas crônicas são pequenas, mas acordam uma infinidade de considerações sobre o que é viver, como se transformar, e as consequências dessas transformações.

Houve momentos em que parei emocionada, como em “Carta ao meu tataraneto”, de onde trago o seguinte parágrafo:

Tente, meu tataraneto, me descobrir registrada no seu código genético e, falando com a sua voz, te dizer segredos de família que não conseguirá ouvir. Sinto, aqui e agora, uma tristeza enorme de me perder assim sem te ver, dentro de você, presa num emaranhado, dito DNA. Liberte-me sendo você mesmo, sorrindo alto como sorriam os meus e com sonhos ousados como foram os meus. Encontre-se comigo num mundo melhor, desvenda-me, desvendando-se a si próprio. [103]

 

 

 

 

E outras em que cheguei a dar um risinho divertido, como em “O sofá, os urubus e as termais”:

Depois de um ano fora, fazendo intercâmbio pela faculdade, minha filha responde ao meu questionamento: ‘Do que você sentiu mais falta aqui do Brasil?’. Sua resposta saltou ligeira, sem dificuldades, como que descoberta antiga e fascinante: ‘Do sofá.’ [41]

Todas essas crônicas, sem exceção, nos levam a ponderar sobre nossas experiências e trazem à tona memórias, algumas bem escondidas na sobreposição de eventos mais recentes.  Mas ter alguém narrando e comentando sobre a vida, ocorrências diárias, quase sempre começadas por gesto ou objeto banal, é muito prazeroso. Porque Nancy de Souza tem e teve uma vida, igual a de todos nós, repleta de pequenos incidentes, de decisões acertadas e outras não tão bem-sucedidas, de momentos que sabia serem importantes. O que a difere do resto de nós todos?  Excelente memória emotiva e factual, bom senso de humor, vários aprendizados adquiridos do mar ao piano, da artista plástica à escritora. Experiências, que transformou em pepitas de ouro para reflexão, como na emotiva despedida, no se desprender das cinzas de seu cão e companheiro, Benjamin James, em “Pó de estrela”.

A cada passo, me dava conta de que todo nosso corpo, ideias e lembranças, podem caber num pequenino saquinho plástico, pois somos pó, pó de estrela. Em explosões cósmicas colocamos os pés no mundo, caminhamos para cá e para lá, estudamos, aprendemos, lemos, nos esforçamos, com a ilusão de que seremos “sempre”. No entanto, aquele saquinho plástico balouçante em minhas mãos me dizia, sem dizer nada, que somos pó, pó de estrelas. [86]

 

 

Nancy de Souza

 

 

Há ainda uma característica dessas crônicas que gostaria de ressaltar.  Há tempos sinto falta na literatura brasileira contemporânea das histórias das pessoas comuns, de uma classe média que trabalha, estuda, quer avançar, quer se melhorar e melhorar o mundo à sua volta.  Tanto da nossa escrita se detém naquilo que é diferente, que é cruel, absurdo, no comportamento limítrofe, nas diferenças, no ódio! Tanta ênfase tem sido dada a extremos que a pessoa comum, que é assolada por dúvidas e decisões que a afetam e a outros também, parece ter desaparecido do nosso horizonte literário.  Nancy de Souza traz a ‘normalidade’ de volta ao palco e nos convida a esquadrinhar o que estamos fazendo com nossos hábitos cotidianos.

Crônicas minhas terá, por algum tempo ainda, um lugar na minha mesa de cabeceira, porque quero voltar a ler, ali e acolá, e ponderar.  Recomendo sem restrições.

 

NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.


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