Irmã da pintora
Florence Fuller (África do Sul- Austrália, 1867-1946)
aquarela sobre papel
O retorno, livro que li em 2012, de Dulce Maria Cardoso, me seduziu com sua linguagem, e suavidade ao tratar nuances nos sentimentos. A autora me encantou pela escrita poética e fluida. Passaram-se dez anos e voltei minha atenção para Eliete: a vida normal que acabou de ser lançado no Brasil. Foi bom ver, que pelo menos no primeiro terço do livro, o charme da escrita de Dulce Maria Cardoso permaneceu intacto ainda que o assunto tratado não se prestasse a tom meditativo de O retorno. De fato, foi o humor que se imiscuiu na narrativa que me surpreendeu, assim como o tratar de episódios corriqueiros e não tão introspectivos que eu havia atribuído à sua voz narrativa.
Eliete: a vida normal é completamente diferente do livro que li anteriormente. Partimos da vida frustrada de uma dona de casa, classe média portuguesa, vivendo em Cascais, que depois de formar uma família, com duas filhas, encontra-se naquela fase tão comum das pessoas de meia-idade: cuidar dos filhos, do consorte e dos pais, que envelhecem. Vende imóveis como profissão porque não conseguia saber a que mais poderia se dedicar. Tudo contribui para o caos generalizado, quando projetos de vida, planeamento e desejos até mesmo banais são descartados pelo bem comum. Neste ambiente, Eliete se sente só. Rendeu-se ao desmazelo, não atrai mais o desejo do marido. Isso é agravado pelo fato de não ter se sentido atraente ou sedutora, na juventude, detalhe ainda mais pesaroso, já que sua irmã conseguiu superar os entraves da juventude, e desfruta de vida interessante aos olhos de Eliete.
O que diferencia a história dessa personagem é o meio por que decide resolver seu problema. A época é a atual. Eliete é viúva do celular. Todos à sua volta estão mais interessados na telinha dos jogos ou das redes sociais, deixando-a unicamente só apesar de fisicamente próxima. Sente-se desnecessária, negligenciada. A vida é enjoada e exaustiva. A bela natureza de Cascais a aborrece. “Deus era um compositor minimal repetitivo naquele lugar, mar e vento, vento e mar, até o chilreio dos pássaros soava sempre ao mesmo.” Irônica, Eliete reflete: “Aprendi assim, de uma só vez, que as pessoas podiam morrer como os bichos e que a utilidade das suas mortes era o sofrimento que causavam aos outros.” Mas o que mais a aflige é o passar do tempo, a vida em branco, a meia idade, como quando corta os longos cabelos, por já não ser tão jovem: “Parecia haver quase um sadismo na satisfação com que o cabeleireiro me cortava o resto da juventude que eu tanto quisera preservar e que, ao contrário do cabelo, não voltaria a crescer.” É fabulosa a narrativa conduzida por Eliete, para justificar suas decisões, ações intempestivas.
Dulce Maria Cardoso continua a encantar com sua prosa. Deixou de lado a magia nostálgica de O retorno; enveredou pelo cáustico comentário da realidade contemporânea. Eliete é vítima desta realidade, mas acha, um meio de se refazer. “O passado foi feito por outros, mas o presente é feito por nós” justifica-se.
Marquei exatas cinquenta e sete frases ou passagens neste livro, de acordo com Goodreads. Muitas foram pelo delicioso descobrir de expressões portuguesas: ‘biquinhos dos pés’, para na ponta dos pés; ‘o roçagar das sedas’; mas boa parte por excelentes descrições da alma feminina. Apesar disso, o livro se prolonga onde é desnecessário. Se dividíssemos a obra em três, o primeiro terço é fantástico, o último é bom, mas o meio se prolonga, torna-se repetitivo. O ritmo se esvai, leva junto o entusiasmo pela leitura. No momento em que a história parece pachorrenta, é mais fácil deixar a leitura de lado por alguns dias. Por isso, e só por isso Eliete: a vida normal, não recebe o máximo de cinco estrelas. São quatro as que dou, com gostinho de três e meio.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.








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