
Retrato de Louis Guillaume, 2006
Alexi Worth (EUA, contemporâneo)
“Acho que seu projeto não contribui para um mundo melhor.”
O professor disse aquilo à queima-roupa enquanto analisava os trabalhos da turma. Enfim: eu estava fora da disputa. Eliminado.
Eu estudava roteiro para cinema em 1999 com um diretor que buscava boas ideias para um projeto internacional. Longa metragem de ficção, tema livre. Cada aluno tinha preparado uma sinopse com perfil de personagens e uma breve justificativa do projeto: seus propósitos, o porquê de seus propósitos, público alvo etc. Acho que meu erro foi esse: eu só queria contar uma história. Nada de transformar o mundo, salvar a natureza, erradicar a miséria, fazer criança gostar de brócolis. O professor nem chegou a comentar a sinopse, só disse que ela não contribuía para um mundo melhor.
Pensei nisso semana passada, quando a Academia de Hollywood divulgou os novos critérios para a admissão de filmes concorrentes ao Oscar de melhor filme a partir de 2024: 1. a história deve ser centrada em um grupo pouco representado, 2. ao menos um dos atores principais ou coadjuvantes devem pertencer a uma etnia ou grupo racial pouco representado, 3. pelo menos 30% dos papéis secundários devem ser preenchidos por duas das seguintes categorias: mulheres, grupos raciais ou étnicos, LGBTQI+, pessoas com deficiência física ou cognitiva. Também há exigências semelhantes para a equipe técnica, empresas financiadoras e distribuidoras e profissionais de marketing, tudo com o intuito de promover “uma comunidade igualitária e inclusiva”. Mas, afinal, o que é uma comunidade igualitária e inclusiva? Como promovê-la?
Tenho certo receio de conceitos vagos com pretensões universais. Prefiro ouvir o mecânico da geladeira explicar o vazamento na cozinha e propor soluções. Nada contra salvar a Terra, mas há muita esperteza por trás dessas nebulosas benignas. Minhas contribuições para um mundo melhor têm sido mais modestas, focadas em resultados pontuais. A imensa maioria da população faz a mesma coisa e é assim que o mundo se salva todos os dias, sem estardalhaço, sem Oscar.
Há cerca de quinze anos resolvi escrever um romance histórico e conversei com sapateiros e alfaiates idosos. Um deles é Fausto Marques, alfaiate tradicional na Gávea, português de nascença, que me mostrou tecidos e instrumentos de trabalho no pequeno ateliê enquanto preparava um paletó com um zelo impressionante. Voltei para casa convencido de que o Seu Fausto contribuía para um mundo melhor, muito embora ele só quisesse fazer roupas de qualidade – ou justamente por isso?
Outro dia conheci um apreciador de carros antigos que coleciona livros raros sobre o tema. Comentando o impacto da Segunda Guerra na economia inglesa, ele contou que em 1948 a indústria Jaguar ainda produzia carros projetados na década de 30, enquanto os americanos estavam anos-luz à frente em estilo e tecnologia. Tenho certeza de que esse estudioso também contribui para um mundo melhor, a exemplo dos enfermeiros que cuidaram de minha avó em sua internação hospitalar ou das gentilíssimas atendentes do restaurante Delírio Tropical, perto de minha casa, que servem saladas com um bailar de mãos sempre ágil e delicado, pinçando folhas, compondo os pratos como se pincelassem um quadro. Conheço uma manicure que luta diariamente para tornar o mundo melhor. Seu campo de batalha são unhas e cutículas. Também conheço porteiros, feirantes, aposentados, médicos, tosadores de cachorros, secretárias, advogados que são muito bons no que fazem e tornam o mundo melhor o tempo todo, inclusive quando estão no metrô, no elevador, na farmácia, no barbeiro, no trânsito, em qualquer lugar.
Sempre achei que um bom texto pode melhorar o mundo pelo simples fato de ser bom, pois aquilo que é bom faz o bem. Cresci lendo grandes autores em linhas às vezes singelas, crônicas do dia-a-dia, artigos de jornal. Textos e arroubos maravilhosos apareciam em qualquer lugar, não apenas nas obras consagradas. Eu me sentia feliz, inspirado, com vontade de aprender mais, de ser melhor, de escrever bons textos e mostrá-los para todo mundo. Nem sempre as pessoas entendiam o que eu queria dizer porque nem sempre eu era claro ou sequer sabia o que estava dizendo. Melhorei bastante, mas nenhum texto é imune às surpresas pregadas pela liberdade interpretativa dos leitores, principalmente quando o autor quer transformar o mundo em vez de dizer algo mais palpável.
Me pergunto o que os novos critérios de Hollywood teriam feito com “Laços de Ternura”, Oscar de melhor filme em 1984, centrado numa complexa relação entre mãe e filha, ambas brancas, heterossexuais, classe média-alta, cercadas por coadjuvantes igualmente brancos. Prefiro não pensar nos estragos causados ao maravilhoso “Muito Além do Jardim” (1979), com protagonistas brancos, alguns multimilionários, enquanto negros secundários e esporádicos faziam o papel de negros secundários e esporádicos.
A coisa é pior do que parece, pois não bastará a menção a grupos marginalizados ou improváveis nas telas. Um dos aspectos mais perversos da censura ideológica é que ela não apenas define aquilo que pode ser mostrado, mas COMO aquilo deve ser mostrado. Que ninguém se atreva a abordar a minoria X, Y ou Z sem agradar ao dirigismo temático de Hollywood, mesmo que os roteiristas e diretores pertençam às tais minorias. Peço um minuto de silêncio para negros, gays, deficientes e afins que simplesmente não queiram falar sobre suas diferenças ou que pretendam mostrá-las sem as lentes validadas pelo olimpo hollywodiano. Outro minuto de silêncio para os excelentes profissionais que nunca terão vez no mercado porque seus talentos não contribuirão para um mundo “mais igualitário e inclusivo”.
Tomara que eu esteja errado, mas consigo prever a ascensão de oportunistas e patotas fechadas, a produção de obras paradidáticas que serão fracassos de bilheteria (como já acontece), equipes de criação forçando a barra para satisfazer Hollywood e o chefe do projeto aos gritos: já falei mil vezes que precisamos botar a pºhh@ de um v1^d0 na história! Por outro lado, veremos cada vez mais alternativas para profissionais e audiências desinteressadas em transformações utópicas.
Se as novas regras de Hollywood não funcionarem a contento, paciência. Nada de desespero. Ainda há muita gente contribuindo para um mundo melhor e você nem precisa assistir à entrega do Oscar para conhecê-las. Basta fazer unhas com a Dirce, encher o tanque do carro com o Camilo, ler um bom texto ou ser atendido pelas moças do Delírio Tropical da Gávea.
De Ronaldo Wrobel, com permissão de sua página no FaceBook





