
Estrada do Alto da Boavista, Rio de Janeiro, 1941
Gastão Formenti (Brasil, 1894 – 1974)
óleo sobre tela, 41 x 33 cm

Estrada do Alto da Boavista, Rio de Janeiro, 1941
Gastão Formenti (Brasil, 1894 – 1974)
óleo sobre tela, 41 x 33 cm

Lendo
Monica Castanys (Espanha, 1973)
Por motivos profissionais de meu marido, passei algum tempo na antiga Iugoslávia, saindo de lá na semana em que a guerra da independência dos estados e eventualmente da Sérvia contra a Bósnia começou. No período que estivemos lá um dos mais incompreensíveis comportamentos que testemunhamos foi o ódio de uns pelos outros muitas vezes por crimes acontecidos há dois ou três séculos, quando aldeias inteiras de um grupo guerreavam contra aldeias de diferentes religiões ou etnias. Lembro-me de acreditar que sentimentos de ódio de tal maneira entranhados na cultura de um lugar são mais tipicamente encontrados na Europa do que em qualquer país do Novo Mundo. A razão é simples: imigrantes que vieram do Velho Mundo deixaram para trás não só a terra natal, mas os hábitos e os ódios centenários para se adaptar a novas realidades. Ler Pátria de Fernando Aramburu [tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht] lembrou-me dessas características do Velho Mundo, quase inexplicáveis para aqueles que de lá emigraram. Rusgas políticas, ódios e desprezo podem e frequentemente tomam conta de aspectos vitais do relacionamento social de grupos étnicos, principalmente quando imaginam que na conta está a identidade nacional, mesmo que esta seja mais teórica do que prática.
Pátria trata do movimento terrorista separatista do País Basco, uma região que cobre parte da Espanha e da França, que um quarto da população fala uma das mais antigas línguas do mundo e que se imaginava capaz de ser um país independente. Lugar pequeno, com língua esdrúxula, população de dois milhões, mas portador de um ego extraordinário, imaginando-se possuidor de importância. Se independente teria que competir com países vizinhos, na indústria, na educação, na saúde e em tudo aquilo que os identificava. Conseguiriam? Não. Contavam, claro, com uso pleno de enormes fundos da Comunidade Europeia. Ou seja, impostos pagos pelos alemães, franceses, ingleses, espanhóis e demais para que eles, os bascos, mantivessem sua identidade independente. Fantasia. Desvario socio-cultural. Impossível justificar-se. Nem a eles mesmos o ETA [Movimento separatista] conseguiu captar a imaginação de toda a população. Apelaram, então, pelo recurso das milícias: ou você participa do nosso plano pagando uma mensalidade ao movimento separatista ou morre. Nenhum movimento de independência pode ter sucesso desta maneira. É preciso incendiar imaginações. É preciso oferecer realidade melhor do que a existente. Eles tampouco tiveram, desistindo oficialmente da separação em 2018.

Para mostrar o exagero miliciano do movimento separatista basco, Fernando Aramburu foca em duas famílias, cujas matriarcas eram as melhores amigas desde criança. Casaram-se, tiveram filhos. Cada qual cumpre seu destino: uma enriquece através do sucesso empresarial do marido, outra se dedica ao movimento separatista, são pobres e invejosos. As amigas se separam. Passam a se odiar. Quando o assassinato do empresário ocorre, a viúva encontra problemas ao voltar para o lugar em que moravam. É nesse ponto que encontramos pela primeira vez os principais personagens de Aramburu. A trama é envolvente. Com capítulos curtos vamos e voltamos no tempo cobrindo aquilo que foi acontecendo — dramas físicos e emocionais dos personagens.
Mas, por mais que detalhes do dia a dia sejam retratados vemos que os personagens pensam sempre no passado, ninguém supera as maldades que sofreu ou que impôs aos outros. As família retratadas quase vivem em função uma da outra, alimentando o ódio assim como os habitantes da antiga Iugoslávia me pareceram fazer sobre acontecimentos enraizados há séculos nas aldeias do país. Ninguém consegue sair do passado. Ninguém consegue esquecer. Perdoar seria necessário para crescerem, para se livrarem. Resta saber se os personagens serão grandes bastante para fazê-lo.

No entanto, a leitura é dificultada por excesso de palavras em basco (realmente, precisamos de um dicionário no final de um romance?). É detalhada demais, o leitor atenta ao que pode ou não ser importante (se um vaso de planta é um gerânio, se as pedras de um bracelete são verdes) que pode ou não ser relevante. Como tantos livros publicados nos últimos anos, faltou o trabalho de um bom editor que cortasse pelo menos umas cento e oitenta páginas dessa obra de mais de quinhentas. Não há necessidade disso tudo.
Fora isso é uma boa leitura. Não entendo o motivo de ter se tornado “leitura obrigatória da intelectualidade carioca”. Mas reconheço que em tempos de pandemia, todos com tempo de sobra, um livro com uma boa história, mesmo por demais longo, possa preencher as manhãs, tardes e noites de isolamento social. Aprende-se um bocado sobre o país basco, além das paixões humanas.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem incentivos para a promoção de livros.