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Uma aldeia no Afeganistão
Jawid Altaf (Afeganistão, contemporâneo)
Óleo sobre tela
www.talents-of-afghanistan.com
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Gostei mais de O silêncio das montanhas do que de O caçador de pipas. Além do autor em comum, esses dois romances têm o Afeganistão como ponto de partida e a cultura afegã norteia ambas histórias. As semelhanças acabam aí. Contrária à sinopse do livro, esta não é a história de dois irmãos. Esta é a história de um deles, de Pari, a menina que aos quatro anos de idade se vê separada do irmão Abdullah, a quem ama. Para acompanhá-la seguimos as vidas daqueles que serão importantes em sua vida. Nem sempre porque a conhecem ou porque interferem diretamente no curso de seu destino. Alguns, os conhecemos, porque apesar de parecerem distantes da trama principal, são responsáveis por ações ou decisões que indiretamente interferem na vida de Pari. Informações que inicialmente parecem extemporâneas, gratuitas mesmo, se mostram de grande valia com o passar das páginas e Khaled Hosseini nos orienta, por entre labirintos temáticos num estilo que lembra as narrativas longas e redundantes das culturas orais, a prestar atenção ao rumo daquela que ele elegeu para nos guiar nessa trama, a menina, a jovem e depois a senhora Pari. As histórias detalhadas, vívidas e pungentes desses personagens secundários, de suas conexões próximas ou não à nossa heroína, são fonte de um esplêndido trabalho de contextualização, que encanta, surpreende e nos leva a ponderar sobre a influência do acaso nos nossos destinos.
Com surpreendente destreza Khaled Hosseini nos revela a beleza crua, trágica, sem polimento, da luta pela sobrevivência, da batalha que engaja todos nós, diariamente, cada qual à sua maneira, mesmo quando não a percebemos. Seus personagens são ricos em detalhes e tridimensionais. Têm sonhos, aspirações e lutam para realizá-los na medida do possível, com as ferramentas a seu dispor, dentro das circunstâncias que lhes são impostas. Por quê? E por quem? Não importa. Como nós, eles estão ao sabor do acaso, folhas ao léu, abandonados em seus destinos, tomando as melhores decisões dentro de seus limites. Tudo nesse caso parece válido: traição, assassinato, guerra, crueldade. Como cada um sobrevive é ditado muitas vezes pela tradição e pela oportunidade. Como manter um resquício de dignidade e aceitar o seu quinhão é a alma da sobrevivência. É também o que os faz humanos.
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Para quem acredita que trabalho árduo e perseverança — acompanhados do bom caráter —abrem portas para o sucesso, O silêncio das montanhas será frustrante. Nele a fortuna tem papel importante: dá rasteiras, inebria, é cruel. A vida é injusta: “Adel não era ingênuo a ponto de não saber que o mundo era basicamente um lugar injusto; bastava olhar pela janela do quarto” (pág. 234). Não há personagens que não tenham que se submeter aos improváveis caprichos do destino: “A beleza é uma dádiva imensa e imerecida, distribuída aleatória e estupidamente” (pág. 284). Nem mesmo o amor escapa sua interferência. É a linda moça desfigurada por um cachorro; é o menino que descobre seu pai não ser o herói que imaginava; é a doença incurável que retira a vida prematuramente. São os amores impossíveis, as pequenas e grandes traições que trazem o inesperado a todas as vidas, a todos os seres. A sucessão de desencontros é permanente e avassaladora, e só é domada pela persistência da memória entre os que se amam. Uma memória com imperfeições, igualmente aleatória, mas que dá vida, profundidade e significado às existências. A memória aparece vital para a sobrevivência, mesmo que seus pesadelos escravizem e assombrem.
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Também surpreende nesse romance a habilidade demonstrada por Hosseini para a variedade narrativa. Ele consegue misturar diversos modos narrativos sem prejudicar a evolução da história. Vamos da epístola à entrevista, da fábula ao diálogo contemporâneo, do passado ao presente e de volta ao passado. Uma bela colcha de retalhos tecida pela narrativa e gerenciada com desembaraço e precisão. Especial menção também deve ser feita à tradução de Cláudio Carina, que passa suave, sem estranhamento, dando ao texto o movimento característico do bom português.
O silêncio das montanhas [And the Mountains Echoed] tem um título inspirado em um verso de William Blake, “And all the hills echoed,” [E todas as colinas fizeram eco] com a palavra ‘hill’ substituída por ‘mountain’ [montanha]. Na nossa versão, o título sugere que as montanhas testemunham o que se passa no primeiro capítulo do livro, impulsionando a ação. Impassíveis, indiferentes, elas compartilham silenciosas do passar das nossas vidas. De fato o título parece um sumário do espírito desse romance: a indiferença da natureza à nossa sina, aos nossos desejos.







