Quadrinha da má companhia

19 12 2012

porquinha  comendo abóbora

Feliz de quem busca amigos
entre homens bons e singelos.
– Quem aos porcos se mistura,
aprende a comer farelos…

(Tapajós de Araújo)





O Natal em Curvelo – texto de Maria Helena Cardoso

19 12 2012

Natal, 1969

Di Cavalcanti (Brasil, 1897-1976 )

óleo sobre tela

Coleção Particular

O Natal em Curvelo era simples e não havia o hábito das pessoas se presentearem, não sei se porque todos eram pobres. Rezava-se a Missa do Galo na matriz, e o que marcava aquele dia como de festa, era o número de comunhões a mais.

Em compensação, o presépio era um costume tradicional. Ninguém que se prezasse deixava de armar o seu: havia-os nas igrejas, nas moradias particulares, os famosos que arrastavam visitantes de fora e os modestos, armados no interior das casas mais humildes.

Nas proximidades do dia, acorriam dos arredores da cidade mulheres, algumas de longe, que traziam para vender, enfeites os mais variados: tocos de pau com parasitas em flor, frutos silvestres, musgo, pedaços de limo verdinho, arrancados das margens de riachos ou de barrancos úmidos e pedrinhas. Quem podia, comprava, e quem não podia, ia ao mato procurar, o que já constituía um aparte da festa. Eram caminhadas sob o sol ardente e à tardinha o regresso, carregados de gravatás, frutos do mato, de cheiro penetrante e agradável, barba-de-pau e seixinhos polidos.

Para enfeitar o lago, imprescindível em qualquer presépio que se prezasse, muito antes da data, plantavam-se em latas de manteiga vazias, arroz, que crescia verdinho e viçoso. As serras eram feitas com o maior apuro: sobre folhas de papel pardo de embrulho, bem encorpadas, passava-se grude de polvilho, espalhando em cima carvão bem moído, reduzido a pó, cinza de borralho e vidro colorido, triturado em pedacinhos no almofariz de bronze, que faziam cintilante a serra.  Quanto mais variadas as cores dos vidros empregados, mais mesas, de acordo com a imaginação de cada um: altas, mais baixas, formando grotas, despenhadeiros, grutas, e de espaço em espaço, barba-de-pau, que lhe dava um cunho de semelhança.

Depois vinha a colocação de vários figurantes: na gruta principal, a manjedoura onde descansava o Menino, N. Senhora e S. José ao lado, os animais tradicionais: o burro, o boi e os pastores.  Pela serra e pelos caminhos polvilhados de areia branca, tudo aquilo que se tinha colecionado durante o ano e, muitas vezes, durante anos.  Animais diversos, homens com cajados, pastores, ovelhas, peregrinos, monjolos, marrecos, leitõezinhos, lenhadores com seus machados, carros de bois, trens de ferro, tudo na mais pitoresca confusão. Era uma procissão de bichos os mais engraçados, camponeses, tocadores de sanfona, pássaros variados nos galhos das árvores das estradas e da serra, todos em demanda da manjedoura onde repousava o Menino sob a guarda de seus pais. Bem no alto, uma grande estrela de papel prateado cintilava, apontando o caminho para os reis magos, ainda em viagem, ao lado de casas coloridas espalhadas, algumas em verdadeiros despenhadeiros, completamente inacessíveis.  Ao redor do espelho, que fingia o lago, latas de arroz mais verde e lindo e patinhos brancos nadando: de celulóide, de louça, ou barro da Cacimbinha, conforme as posses do dono do presépio.  Misturado a tudo, sobre areia e folhas, mangas cheirosa, abacaxis maduros, gravatás e uvas pretas pendentes de belos cachos, que ainda conservavam frescas as suas folhas.

De 24 de dezembro a 6 de janeiro não se pensava senão na visita aos presépios da cidade.

Ia-se de casa em casa, à procura deles, desde os mais famosos, que tinham monjolos pequeninos movidos à água, oficina de carpintaria completa, com instrumentos se movendo, até os mais humildes como o nosso, que só possuía as figuras do estábulo, as serras que nós mesmos fazíamos, o lago rodeado de arroz plantado muito tempo antes, uns poucos bichinhos disformes, moldados por nossos dedos inábeis no barro cinza que trazíamos de Cacimbinha.

Para mim, porém, não havia nenhum mais belo, nenhum que o igualasse.  Passava o dia colocando nele flores e frutos que conseguia arranjar com uns e outros. Tempo feliz.

Em: Por onde andou meu coração: memórias, Maria Helena Cardoso, Rio de Janeiro, José Olympio: 1968, 2ª edição, Coleção Sagarana, volume 70.

 

Maria Helena Cardoso, professora, escritora, ficcionista e memorialista.  Nasceu em Diamantina, MG em 1903 e faleceu  no Rio de Janeiro em 1994.  Passou a infância em Curvelo, MG, onde fez os primeiros estudos, prosseguindo-os em Belo Horizonte, onde se formou na Escola de Farmácia.  Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1923.  [Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras: 1711-2001, Nelly Novaes Coelho]

Obras:

Por onde andou meu coração, memórias, 1967

Vida,vida, romance, 1973