E a vida segue…

7 09 2012

Luiz Oscar Dubeux

O mundo está mais vazio.  Oco.  As energias não reverberam como antes.  Há uma grande distância entre os objetos.  E estou impressionada que a vida continue normal à minha volta, com pessoas indo e vindo, passeando, conversando, dançando, determinando em quem votar nas próximas eleições, como se não notassem essa mudança no cosmos.   Ah, sim, o mundo mudou, mas foi só para mim, minha família e umas duas ou três dezenas de pessoas que tinham em comum um elo, um amigo, um homem, quase excêntrico, solitário, monástico e católico: Luiz Oscar Dubeux.

Era nosso amigo.  Não só amigo meu e de meu marido.  Era daqueles amigos da família.  L.O. como o chamávamos carinhosamente apareceu no nosso horizonte há aproximadamente 26 anos.  Eu não morava no Brasil na época. Havia uma crise de saúde, um momento delicado, de apreensão na família: cirurgia e especialistas de fora.  Espreitando a situação estava o enigma do discurso médico, um grande empecilho.  A língua estrangeira era dominante e a necessidade de traduções precisas se fazia necessária.  L.O. era  fluente em inglês.  Na verdade sobrevivia ensinando inglês para brasileiros, mas, sobretudo português para estrangeiros.  Algumas traduções documentos e livros recheavam o seu dia a dia.  Habilitou-se a fazer a interpretação simultânea e assim fez-se indispensável,  com sua capa de super-herói disfarçando a vida ascética, de doação.

Passada a bem-sucedida cirurgia, ficou amigo.  Primeiro de meu irmão e sua família.  Depois de minha mãe e de meu outro irmão, naquela época solteiro. Participava de almoços de domingo na casa de mamãe.  Era membro com quem contávamos nas festas de aniversário, na feijoada comemorativa, incluído paulatinamente em todos os rituais familiares.  Passou muitos Natais conosco.  E alguns Anos-Novos também, quando se celebrava o seu aniversário, com atraso de 24 horas.  Era do dia 30 de dezembro. Curioso sobre muitos assuntos culturais, amava a Inglaterra e quase tudo inglês.  Ouvia a BBC pelo rádio bem antes do tempo em que ela surgiu na TV a cabo. Era versado em “britanices”, aquelas pequenas idiossincrasias que fazem os britânicos adoráveis.  Apaixonado pelo cinema desde criança, pois seu pai trabalhara para a Cia. Severiano Ribeiro, aqui no Rio de Janeiro, L.O. tinha assunto sempre, a qualquer hora e se expressava num português maravilhoso, correto, preciso, de vocabulário rico e frases inteiras.  Era um prazer escutá-lo, mesmo se não subscrevêssemos suas opiniões.

Andarilho inveterado, ia a pé à casa de seus alunos. Andava por prazer.  Conhecia todos os caminhos, trilhas e cortes das matas do Rio de Janeiro, porque ia da Gávea, onde morou desde a década de 1960, à Floresta da Tijuca.  Andava também pelo bairro, até uns sete ou oito  anos atrás.  Costumava caminhar  a qualquer hora do dia ou da noite, até que, já mais idoso, foi assaltado numa noite: caiu, quebrou os óculos e se machucou seriamente, quebrando os dentes da frente nessa ocasião.  A partir desse evento, à noite só dava a volta no quarteirão de seu prédio.  Mesmo com o crescimento galopante do bairro, quase todos por aqui o conheciam.  Tomava café no Shopping onde lia o jornal diariamente.  Conhecia e falava com todo mundo. Sabia o nome de todos os seguranças das ruas, conhecia os porteiros dos prédios, os donos dos estabelecimentos comerciais, os garçons, os jornaleiros e principalmente os moradores mais diversos, seus cachorros, e o nome de seus cachorros.

Luiz Oscar era um homem sociável.  Muito sociável.  Amante da musica clássica, custou a se “computarizar” e se o fez, foi graças aos amigos.  Solteirão, como falava minha mãe.  Havia uma noiva escondida em alguma época de seu passado, vítima de uma morte prematura.  Orgulhava-se de ter  sido aluno do Colégio Padre Antônio Vieira, aqui no Rio de Janeiro e  ainda tinha amigos dos tempos de escola. Católico à moda antiga, participava da missa em latim, celebrada na PUC e ocasionalmente ia ao Mosteiro de São Bento para uma missa cantada.  Mas não fazia proselitismo.  Um quase monge, tinha o lugar na família que muitos padres costumavam ocupar em priscas eras: era parte presente, sempre convidado, sempre bem-vindo, sempre afável, sempre consultado.  Bom ouvinte.

Boas amizades só florescem e dão frutos quando respeitamos “o outro” intacto, pleno.  E não era difícil aceitar os hábitos e vieses de Luiz Oscar, porque eles nos enriqueciam e nos mantinham em deslumbramento.  Inveterado documentador de sua própria existência L.O. escrevia tudo que se passava com ele diariamente.  Era, portanto, capaz de nos dizer: eu o conheci pela primeira vez no dia tal, da semana tal, do ano…  Sabia das datas e do que havia feito e com quem precisamente.  Provavelmente mais consequência de uma vida solitária do que por obsessão irracional.  Como bom tradutor e professor de línguas colecionava expressões em português, inglês britânico e americano.  Tinha uma centena de projetos em andamento… Também conseguia se lembrar de todas as datas importantes em sua vida assim como na vida de seus amigos.  Não havia um aniversário sem felicidades, uma viagem de que chegássemos sem as boas-vindas num telefonema cordial.   Como andarilho observava a cidade à sua volta, à sua maneira.  Sabia a distância aproximada dos lugares que frequentava em metros, passos e minutos a pé.  Sabia o número de degraus da maioria das escadarias que subia.  Foi o responsável por eu ter andado a praia de Copacabana diversas vezes, quando morei naquele bairro, contanto o número de edifícios de frente para o mar… Ele sabia.  Eu, que andava pela manhã para me exercitar, caí na esparrela de verificar se ele estava certo.  Diferimos.  Mas chegamos ao motivo: havia edifícios cujas entradas eram pelas ruas laterais e não considerados “de frente” para o mar. Dou exemplos de suas maneiras de entreter a mente para ilustrar essa mente alerta, para lembrar o homem que foi.  Perdemos L.O. esta semana.  Morreu como viveu,  só.  Sem familiares à sua volta.  Vai-se para tristeza dos muitos amigos, sua família por escolha.  Meu marido não terá mais o companheiro dos chopes de quintas-feiras, dos vídeos de filmes antigos e sentirá a ausência do torcedor da seleção brasileira nos jogos internacionais. Meu marido perde seu melhor amigo no Brasil.

E a vida segue.


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11 responses

7 09 2012
Avatar de Harry Harry

Obrigado, Ladyce. It was beautiful. You captured everything we loved about the guy. His friendship with everyone whom he loved conversing with was what we all valued most. He seemed to live in and through his friends, and he repaid with good conversation those whom he enjoyed being with. His monastic life you have captured very well. Thank you. Harry

7 09 2012
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Thank you. I haven’t been so sad in a long, long time.

7 09 2012
Avatar de http://nos-todos-lemos.blogspot.com.br/ http://nos-todos-lemos.blogspot.com.br/

Ladyce,
Pessoas querida nos acompanham sempre pois a levamos em nossas boas lembranças.

7 09 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Lígia você tem toda razão. Ele estará conosco até o fim. Obrigada.

7 09 2012
Avatar de Richard Taylor Richard Taylor

Cara Ladyce,

LO me ajudou a ler o seu artigo lindo e amoroso.

Sou um dos britânicos dele que começou a aprender o idioma português há 12 anos, quando nossa família chegamos ao Brasil. Sua enorme capacidade de ensino, com estrutura e gramática e um vocabulário cada vez maior, sempre foi ao lado e muitas vezes atrás de sua paixão por aprender e ouvir e fazer ligações.

LO tornou-se parte da nossa família – de uma maneira que seja difícil de acreditar que em breve não haverá uma corrida para checar que temos o chá pronto e um pacote extra de biscoitos na mesa! Ele era um cavaleiro de outra epoca em uma busca honrosa para absorver e compreender todas as coisas – especialmente coisas britânicas. Ele amava a Grã-Bretanha – que ele acreditava (se correto ou não) era sinônimo com as coisas que tinham significado profundo para ele – integridade, tenacidade, honestidade e lealdade.

Ele explorou e devorou o mundo através de livros, jornais e conversas de uma forma tão envolvente. Ele estava cheio de contradições – que ele amava a companhia de outras pessoas, mas viveu o que os outros considerariam uma vida solitária – ele gostava de tentar entender o mundo, mas permaneceu no Rio de Janeiro – ele adorava ensinar, mas preferiu a intimidade de conversas profundas sobre qualquer assunto.

Ele sonhou sobre este reino mágico onde os estudantes têm uma compreensão básica da gramática, onde a justiça é feita, onde o intelecto, honestidade e compaixão são recompensados. Ele queria fazer muito, mas não quis entrar no mundo comercial, onde seus alunos e muitos de seus amigos trabalhavam, para encontrar os recursos para concluir suas aventuras. Eu acredito que ele amava a sua vida em torno da Gávea, onde ele sabia os nomes de metade da população – e, provavelmente, os seus números de telefone, endereços e datas de nascimento.

Mais do que qualquer coisa, ele amava sua rede de amigos diversos – realizada em conjunto por esta habilidade preciosa para trazer o melhor nas pessoas e trazer uma eloqüência e uma conversa ao mundo que fará falta.

Cada um de seus amigos que são tão tristes esta semana vai chorar as possibilidades que nunca serão criadas ao longo do próximo chopp ou xícara de chá, mas levará uma parte de seu espírito de inquisição, interesse e sua sede de entendimento, e celebrará os momentos mais felizes juntos com Luiz Oscar.

Richard

7 09 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Richard,

Obrigada pela sua lembrança de Luiz Oscar. Sei de como você e sua família eram importantes para ele. Muito importantes. Vocês eram estrelas brilhantes no firmamento de L.O. Sim, ele fica conosco na nossa memória e nas perguntas que nos ensinou a perguntar. Um grande abraço, Ladyce

7 09 2012
Avatar de Nanci Sampaio Nanci Sampaio

Dear Ladyce,
Don’t know what to say, but I’m sorry…
Nanci.

7 09 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Obrigada Nanci, não há o que dizer… Obrigada. Muito obrigada!

9 09 2012
Avatar de Philip Dwyer Philip Dwyer

Meu nome é Phil Dwyer, carioca de 68 anos, aposentado em Taubaté, SP. Fui amigo do L.O. desde 1965, apresentado por meu falecido irmão Thomas, seu contemporâneo de PUC-RJ. Ele ainda morava em Copacabana com os pais, seu Oscar e Da. Hélvia, e as 3 irmãs, antes se mudarem para a Gávea.Eramos otimos amigos de caminhadas pelas praias nos Domingos, desde o fim do Leblon até o Arpoador. Para os cariocas de nossa geração lembrarem,tambem frequentamos muito o Garden´s Bar e o Restaurante Alpino( extinto), ambos no Jardim de Alá, a Pizzaria Cesare em Copa, nossa preferida após um bom filme nos cinemas do bairro, e o extinto Real Astória no Leblon. Ele esteve mais de uma vez em nosso sitio perto de Vassouras e eu no sitio do tio dele em Paulo de Frontin.Eu admirava muito a cultura , inteligencia e caráter do L.O., e compartilhava a grande maioria de seus valores Católicos, politicos e econômicos. Adorava conversar e debater idéias com ele até altas horas.Deixei o Rio por SP em 1968 mas sempre mantivemos contato. Voltando em 1980, convidei-o para ser professor de ingles dos empregados da empresa onde eu trabalhava, como Gerente da Filial.Voltei a SP, e após me aposentar em Taubaté, voltei mais amiúde ao Rio, e sempre saia com ele e outro amigo comum,para um tradicional chopp com pizza no Rascal do Shopping Leblon. A ultima vez que o vi foi em Abril deste ano, e ele me parecia bem como de costume, embora agora pareça que ele já vinha perdendo a saúde há algum tempo, mas não gostava nem de pensar em ir ao médico. Pena.Talvez seu subito falecimento pudesse ter sido ao menos adiado, até eu conseguir estar com ele novamente.A vida é imprevisível, e passa tão rápido. Mas as amizades sinceras e profundas como as que ele tinha com seus amigos de verdade permanecem em nossos corações, mesmo que não tenhamos mais a alegria de revê-lo e bater longos papos.Soube de seu falecimento através de uma amiga comum só após o sepultamento, e senti grande vontade de chorar, como se tivesse perdido um irmão mais velho, sábio e confiável. E acho que era assim mesmo que eu o via..
O L.O. já deve estar melhor que nós, e intercedendo pelo nosso bem, junto ao Pai..
Phil

9 09 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Phil,

Que belo testemunho! Sim, eu o conheço de nome, através de L.O. Sei que você sentirá sua falta tanto quanto nós aqui no Rio de Janeiro estamos sentindo. L.O. falava sempre de você e sabíamos quando você estava no Rio de Janeiro porque ele abria espaço na sua agenda para “passar um tempo com o Phil”. Ele também tinha boas lembranças do tempo que passaram juntos na juventude e sempre se referia a você como o “meu grande amigo”. Você tem razão, ele já está lá intercedendo por todos nós. Um grande abraço, Ladyce

9 09 2012
Avatar de peregrinacultural peregrinacultural

Recebido por email…

Ficamos muito tristes com a notícia…não encontro palavras nesse momento…espero que o tempo possa amenizar a dor e substitui-la por paz e lembranças.
Quando ando pelas ruas da Gávea sinto um vazio… falta alguma coisa…parece que arrancaram uma parte da Gávea. Outro dia de repente vi alguém olhei duas vezes, pensando que era Luiz Oscar. Esqueci, não era ele…
Eu estava habituada cruzar com ele pelas ruas e trocar algumas palavras.
Procuro entender…é dificil.
O dia mais importante da vida da gente não é o dia em que conhecemos uma pessoa, mas sim quando ela passa a existir.
Um beijo grande
Bruna

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