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São Luiz do Maranhão, s/d
Fernado Castelo Branco (Brasil, contemporâneo)
Pintura
http://casteloartes.blogspot.com.br/
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Formigas históricas
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Viriato Corrêa
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Naquele primeiro decênio do século XVIII os frades capuchinhos do Convento de Santo Antônio de S. Luiz do Maranhão estavam de um azar horrível.
A horta, a linda horta que cultivavam na gorda e vasta terra do quintal do convento, não dava positivamente nada. A couve era pouca para a sopa e os cozidos, o repolho não chegava sequer a arredondar, o cebolinho não medrava, a alface, o nabo, a bertalha — uma miséria.
E tudo isso por que? Porque as malditas saúvas, as infernais formigas, proliferavam assustadoramente por todos os cantos do terreno dos frades.
Era uma canseira aquilo. Quando a plantinha ia começando a viçar, quando os tomates, os pepinos, a alface, o coentro, a celga, tudo ia dando os primeiros sinais de vida, zás! lá vinham as formigas e, numa noite, inutilizavam o trabalho de um mês inteiro. Um inferno.
O superior dos capuchinhos fez tudo que era humanamente possível fazer contra formigas: regos em roda dos canteiros de plantas, figi à boca dos buracos, água abundante na “panela mestra” dos formigueiros, mas tudo foi inútil. As formigas desapareciam por uns dias, por semanas, mas voltavam sempre, cada vez mais numerosas e cada vez mais daninhas.
Da horta já tinham passado para o pomar. As laranjeiras ficavam peladas de dia a dia, os tamarindeiros não tinham mais folhas, as jaqueiras já não vingavam uma carga. Um pavor!
Os frades reuniram-se, conferenciavam, tramavam, rezavam à beira dos formigueiros, mas tudo baldadamente. O demônio das formigas voltavam, voltavam sempre, às fieiras, aos milhões, destruindo e devastando.
Uma manhã o irmão dispenseiro acordou alarmando o convento. Estava tudo perdido para a comunidade capucha de S. Luiz do Maranhão! As formigas agora já se não satisfaziam com o pomar e a horta. Tinham invadido (parecia incrível, mas tinham!) a despensa da ordem e estavam (que raios de formigas!) a furtar, rigorosamente a furtar, a farinha com que os frades faziam os seus ricos pirões!
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Ilustração: desconheço a autoria.
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A fradalhada pôs as mãos na cabeça. Aquela perseguição dos diabólicos himenópteros iria até à destruição total da Ordem no Maranhão. Era o cerco com todos os característicos, era o assédio da fome.
E os frades vieram à despensa verificar o estrago. Um deles solta um grito aterrador. A desgraça não estava somente no furto da farinha: as formigas cavavam os seus buracos, afundavam as suas “panelas” debaixo dos alicerces do convento, e as paredes abaladas nos fundamentos, acabariam por vir abaixo, mais tempo menos tempo.
Aquilo era uma invasão de propriedade! aquilo era o esbulho de um direito! Para as situações extremas as extremas medidas.
E qual o remédio? Processar as formigas, e processá-las judicialmente. Talvez que a autoridade do juiz desse um remédio aquele abuso.
E os frades capuchos propuseram a ação no foro eclesiástico de S. Luiz. Quanto à data da propositura da demanda não há nenhuma segurança histórica. João Francisco Lisboa*, que teve o processo nas mãos e que dele tirou uma cópia, não lhe encontrou as primeiras folhas.
O processo segue a marcha regular dos processos comuns. Os frades oferecem a acusação e testemunham-na. São pobres, vivem de esmolas e estão sendo insistente e irremediavelmente lesados pelas formigas “animais de espírito contrário ao Evangelho”. As formigas não só os roubavam, tirando-lhes o pão da boca com a destruição da horta e do pomar e subtração da “farinha de pão guardada para o cotidiano abasto da Comunidade”**, como também os queriam expulsar de casa. E terminavam pedindo que fossem mortas as formigas.
O juiz nomeia um curador para as rés. Este, a 17 de janeiro de 1713, contradiz as testemunhas apresentadas pelos frades. As testemunhas são irmãos terceiros da Ordem de S. Francisco, ligados intimamente aos capuchinhos e, portanto, suspeitas de parcialidade.
A 24 do mesmo mês e do mesmo ano o juiz, o padre vigário geral, o licenciado José Teixeira de Morais, despreza os embargos de contradita oferecidos pelo procurador das formigas.
Antes, em dezembro do ano anterior, tinha havido a inquirição das rés. Cinco testemunhas foram por elas apresentadas. De uma delas conserva-se o nome – o capitão Urbano Rodrigues – que, no tempo, dizia ter 94 anos de idade. É uma testemunha a valer. Afirma que as formigas não podem ter malícia nenhuma no prejuízo que estão dando aos frades, pois que não há nelas o uso da razão, visto que são irracionais e, pelo que se sabe, os irracionais não conhecem a diferença do bem e do mal. Afirma ainda que elas eram naturais da terra: sempre ali viveram, sempre se espalharam por todos aqueles lugares da cidade e dos matos e que (aí é que, segundo a gíria moderna, “matou os frades na cabeça”) quando os religiosos ali chegaram, já ali estavam as formigas.
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Ilustração do livro “Palestina Pitoresca”, sem notação de autoria.
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Começaram os debates escritos nos autos. O procurador dos capuchos faz carga sobre as destruidoras dos haveres do convento; o procurador das rés defende-as rigorosamente.
A defesa citada pelo padre Manuel Bernardes é interessante. O Criador dera às formigas o benefício da vida, elas tinham portanto o direito de conservá-lo por aqueles meios que Deus lhes ensinara. Que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens os exemplos das virtudes que acautelando os futuros, e guardando para o tempo de necessidade: “Formicae populus infirmus qui proeparat in messe cibum sibi”.
E mais: que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o dos frades em ajuntar, porque a carga era muitas vezes maior que o corpo, e o ânimo que as forças. Que, apesar dos frades serem mais nobres e dignos do que as rés (para os autores da ação este argumento devia ter sido decisivo) diante de Deus não passavam eles de miseráveis formigas. As rés não estavam a usurpar direitos: quando os capuchinhos ali chegaram, já elas ali viviam e que, portanto não deviam ser esbulhadas e, se isso fosse tentado, “apelariam para a coroa a regalia do Criador que tanto fez os pequenos como os grandes, e a cada espécie deputou seu anjo conservados”.
E finalmente: a terra era de Deus e não deles, os frades.
Passam-se seis meses. Há como uma pedra em cima da demanda.
As formigas, ao que parece, teimam em destruir os cebolinhos, os nabos e os repolhos dos frades. Eles continuam a ação. Recomeçam-na requerendo a reinstauração da instância perempta. O vigário forâneo, o licenciado Manuel Homem, defere-lhes o pedido. Procede-se a diligência. A certidão, João Lisboa fez conhecida:
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“ Eu, escrivão do eclesiástico, abaixo assinado, fui ao Convento de Santo Antônio dos Capuchos, e sendo lá na sua cerca, citei as formigas em sua própria pessoa por todo o conteúdo da petição e despacho acima, lendo-lhes tudo verbum ad verbum, havendo-lhes nesta forma a citação por feita, em fé do que passei a presente em S. Luiz 19 de junho de 1716 – Joseph Guntardo de Backmannz”.
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Pelo que diz o padre Manuel Bernardes, a demanda foi até a sentença final. O juiz determinou que os frades sinalassem dentro da cerca do quintal do convento, um lugar para as formigas viverem e que estas, sob pena de excomunhão, não mudassem de vivenda, “visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem mútuo prejuízo”.
“Lançada a sentença, é o autor da Nova Floresta quem escreve, foi o religioso, de mandado do juiz, intimar, em nome do Criador, aquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros. Caso maravilhoso, e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor, de quem está escrito, que brinca com as suas criaturas: Ludens in orbe terrarum! Imediatamente: It nigrum campie agmen, saíram a toda pressa milhares daqueles animalejos, que formando longas e grossas fieiras, demandaram em direitura o sinalado campo, deixando as antigas moradas e, livres de sua molestíssima opressão, aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação do seu poder de providência.”
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Frade no jardim, gravura italiana 1416.
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Nada disso é verdade. A demanda das formigas não foi até a sentença final.
João Lisboa, que estudou o processo, afirma no Jornal de Timon que a questão parou a 20 de junho de 1714, quando é nomeado o novo curador ad litem para as formigas. Parou no termo de vista dado ao procurador dos frades.
E há uma circunstância interessante para mostrar a falsidade das afirmações do grande estilista português.
Em 1714, nos autos da demanda das formigas, ainda se escreviam termos de vista às partes e, a Nova Floresta, onde vem a narração do feito, impressa em Lisboa de 1706, já conta da sentença final.
A demanda das formigas houve. João Lisboa teve-lhe os papéis nas mãos cento e cinquenta anos depois.
Por onde eles andam agora é o que ninguém sabe.
Em 1860, mais ou menos, frei Vicente de Jesus deu-os de mimo a um particular.***
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* João Lisboa — Jornal de Timon.
** Padre manuel Bernardes — Nova Floresta.
*** João Lisboa — Obra citada.
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Em: Terra de Santa Cruz: contos e crônicas da História Brasileira, de Viriato Corrêa, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira:1956