Jovem senhora lendo no campo, 1798
Louis Leopold Boilly (França, 1971-1848)
carvão com detalhes em pastel vermeho,
Hood Museum of Art, Dartmouth College
“Naquele tempo o comércio dos livros era, como ainda hoje, artigo de luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras literárias tinham menor circulação.
Provinha isso da escassez das comunicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.
Cada estudante, porém, levava consigo a modesta provisão que juntara durante as férias, e cujo uso entrava logo para a comunhão escolástica. Assim correspondia São Paulo às honras de sede de uma academia, tornando-se o centro do movimento literário.
Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia a nossa biblioteca, era de Francisco Otaviano, que herdou do pai uma escolhida coleção das obras dos melhores escritores da literatura moderna, a qual o jovem poeta não se descuidava de enriquecer com as últimas publicações.
Meu companheiro de casa era dos amigos de Otaviano, e estava no direito de usufruir sua opulência literária. Foi assim que um dia vi pela primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edição em folha que os tipógrafos da Bélgica vulgarizam pôr preço módico.
As horas que meu companheiro permanecia fora, passava-as eu com o volume na mão, a reler os títulos de cada romance da coleção, hesitando na escolha daquele pôr onde havia de começar. Afinal decidia-me pôr um dos mais pequenos; porém, mal começada a leitura, desistia ante a dificuldade.
Tinha eu feito exame de francês à minha chegada em São Paulo e obtivera aprovação plena, traduzindo uns trechos do Telêmaco e da Henriqueida; mas, ou soubesse eu de outiva a versão que repeti, ou o francês de Balzac não se parecesse em nada com o de Fenelon e Voltaire; o caso é que não conseguia compreender um período de qualquer dos romances da coleção.
Todavia achava eu um prazer singular em percorrer aquelas páginas, e pôr um ou outro fragmento de ideia que podia colher nas frases indecifráveis, imaginava os tesouros que ali estavam defesos à minha ignorância.
Conto-lhe este pormenor para que veja quão descurado foi o meu ensino de francês, falta que se deu em geral com toda a minha instrução secundária, a qual eu tive de refazer na máxima parte, depois de concluído o meu curso de direito, quando senti a necessidade de criar uma individualidade literária.
Tendo meu companheiro concluído a leitura de Balzac, a instâncias minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela oposição de meu parente que receava dessa diversão.
Encerrei-me com o livro e preparei-me para a luta. Escolhido o mais breve dos romances, armei-me do dicionário e, tropeçando a cada instante, buscando significados de palavra em palavra, tornando atrás para reatar o fio da oração, arquei sem esmorecer com a ímproba tarefa. Gastei oito dias com a Grenadière; porém um mês depois acabei o volume de Balzac; e no resto do ano li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo.
A escola francesa, que eu então estudava nesses mestres da moderna literatura, achava-me preparado para ela. O molde do romance, qual mo havia revelado pôr mera casualidade aquele arrojo de criança a tecer uma novela com os fios de uma ventura real, fui encontrá-lo fundido com a elegância e beleza que jamais lhe poderia dar.”
Em: Como e porque sou escritor, José de Alencar, 1893, p. 13-14 [em domínio público]