O quinhão de Natal
Joseph Clark (GB, 1834-1926)
óleo sobre tela, 90 x 120 cm
Uma reunião de Natal, com os quatro filhos adultos, é o panorama em que se situa o clímax do livro A Estrada Verde de Anne Enright. É aí, nesses poucos dias entre a véspera de Natal e o dia de Santo Estevão [Boxing Day, em alguns países] que vemos a interação entre os quatro irmãos já adultos e sua mãe Rosaleen Madigan. As diferenças entre os quatro membros da prole foram apresentadas paulatinamente, em algum detalhe, em capítulos a eles dedicados que quase funcionam como contos independentes. A descendência dessa matriarca irlandesa é esmiuçada em diferentes estágios da vida e a complexidade de seus problemas de relacionamento e sobrevivência realisticamente retratada.
Dessa forma, quando chegamos à Segunda Parte do livro, hora em que todos voltam a se encontrar como adultos, com suas disfunções únicas, amargores, alegrias e objetivos frustrados, encontram-se entre si e face a face com a grande manipuladora mas muito solitária matriarca, o desabrochar de emoções guardadas há tempos, de percepções re-confirmadas é inevitável.
A estrada verde foi minha apresentação a Anne Enright que ocupava um lugar na lista de futuras leituras, desde que ganhara o prêmio Man Booker em 2007. Muito bem escrito com trama complexa, o livro custou a me encantar, talvez por sua organização: uma visão de cada um dos personagens, filhos de Rosaleen, sem conexão um com o outro, como se fossem contos independentes que focaram nas suas vidas em diferentes e específicos momentos. Só mais tarde se percebe que são acontecimentos pivôs para o entendimento de suas personalidades. Daniel, Constance, Emmet e Hanna, irmãos, inevitavelmente nos levam a ponderar sobre as diferenças entre filhos de mesmos pais. Raramente nos debruçamos sobre essas diferenças a não ser que ela causem ciúmes ou inveja, fortes emoções, exploradas abundantemente na literatura e no teatro. Mas esse texto nos faz voltar à questão mesmo quando cada qual segue seu próprio caminho, independente do outro.
Como na maioria das sagas familiares irlandesas a mãe, Rosaleen, é a personagem principal. Dada a gestos e atitudes teatrais, manipuladora, frequentemente insensível, em algumas ocasiões indelicada, seu eixo, seu equilíbrio emocional está no lugar em que vive, como se encantada pela natureza à sua volta. Solidão é sua companheira. E o envelhecimento não a ajuda. Não se sente querida, amada ou necessitada. Inútil recorre de um ato inesperado para chamar a atenção de seus filhos.
Anne Enright
Dizem que sem uma família disfuncional a literatura irlandesa contemporânea não existiria. Não parece ser o caso aqui, ou talvez eu já esteja considerando toda e qualquer família disfuncional. Anne Enright talvez seja a escritora que li recentemente que melhor retrata a realidade moderna, suas preocupações. Desejos. Problemas. É uma realista no tratamento do comportamento gay, nas razões para a dedicação às ONGS contra a fome ou os males do mundo, também apresenta com bastante ponderação o retrato do excesso da bebida ou o medo das doenças sem cura como aids ou câncer. Apesar de qualificado como melancólico achei o texto bem equilibrado, com uma narrativa bastante neutra e de quando em quando com algum humor. Não é um texto jovem. Acredito ser um texto maduro, melhor entendido e explorado por aqueles que já viveram muitas vidas. Foi uma boa leitura. Ficará comigo por algum tempo, repercutindo.
NOTA: este blog não está associado a qualquer editora ou livraria, não recebe livros nem qualquer incentivo para a promoção de livros.